Golpes de Estado se sucedem na África, dividem a população e preocupam o Ocidente

Pobreza e falta de fé nas democracias locais explicam por que os africanos vão s ruas para comemorar a tomada de poder

Mali, Burkina Faso, Níger e Gabão guardam algo em comum, além de serem países africanos: sofreram golpes de Estado nos últimos dois anos. A situação não chega a ser novidade no continente, que desde a década de 1950 testemunhou cerca de uma centena de tomadas de poder. Porém, para as nações Ocidentais, a onda atual é preocupante, pois reduz sua influência e aumenta o poder de novos parceiros, como a Rússia. A população local, por sua vez, está dividida, e muitos enxergam a ascensão dos militares como um fator positivo. É o que afirmam analistas ouvidos pela agência Associated Press (AP).

Remi Adekoya, professor na Universidade de York, diz que a falta de perspectiva explica a posição da população local. “Os africanos não acham que a ideia de um regime militar seja boa. É a decepção com o que deveria ser um regime democrático que está fazendo com que as pessoas, se não apoiam abertamente a ditadura militar, não sejam contra ela”, disse. “Os líderes que deveriam ser democratas não cumprem as regras da democracia, e as pessoas se perguntam: o que há neste sistema para mim?”

Putin (direita) e o presidente interino de Burkina Faso, Ibrahim Traore (Foto: kremlin.ru)

Os números justificam a alegação. Entre os 54 países do continente africano, 27, exatamente a metade, aparecem entre os 30 menos desenvolvidos do mundo, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU (Organização das Nações Unidas).

Não são exatamente países desprovidos de fontes de riqueza, vez que muitos têm recursos naturais valiosos. Ocorre que o lucro não chega à população, concentrando-se invariavelmente nas mãos de líderes nacionais que não poupam esforços para enfraquecer a democracia a ponto de se perpetuarem no poder.

O resultado é uma população insatisfeita com os falhos sistemas democráticos estabelecidos. Dados divulgados no início deste ano pela ONG Afrobarometer, que atua com pesquisas e armazenamento de dados estatísticos, aponta que somente 68% dos entrevistados em 34 países africanos preferem a democracia a outros sistemas de governo. Uma queda em relação aos 73% da década anterior.

Pobreza e interferência estrangeira

O Níger, palco de um golpe de Estado ocorrido em julho deste ano, é o terceiro país menos desenvolvido do mundo, com 4,3 milhões de pessoas necessitando de assistência humanitária. Após os militares destituírem o presidente democraticamente eleito Mohamed Bazoum, o que se viu foi cidadãos indo às ruas para celebrar, acusando a França de roubar as riquezas do país e de não ajudar a estabelecer a segurança no país, principal foco do acordo com Paris.

Quem mais tem a ganhar com isso é a Rússia, ultimamente vista pelos cidadãos de algumas desses países como a melhor alternativa para parceiras de combate ao terrorismo. Em troca, as forças russas, por ora ainda representadas pelo Wagner Group, são pagas justamente com os recursos naturais que nunca chegam à população.

O caso do Gabão expõe muito bem a insatisfação da população com um sistema democrático falho, que permitiu ao presidente Ali Bongo Ondimba se reeleger para um terceiro mandato, ampliando o poder da família dele para mais de meio século.

Após o golpe, em 30 de agosto, um porta-voz dos militares que assumiram o controle da nação descreveu o trabalho de Bongo na presidência como uma “governança irresponsável e imprevisível, resultando numa deterioração contínua da coesão social que corre o risco de levar o país ao caos.”

Segundo Adekoya, o aval popular acaba realmente por viabilizar novas tomadas de poder. “O que é mais encorajador para qualquer pretenso conspirador golpista hoje é a reação da multidão aos golpes, o fato de que em muitas ruas desses países as pessoas estão saindo para celebrá-los”, disse ele.

O resultado, apesar do aval popular, está longe de ser positivo. No Mali, que sofreu golpes de Estado sucessivos, os mais recentes em 2020 e 2021, os militares chegaram ao pode sob o argumento de proteger o país da ameaça terrorista. De lá para cá, porém, o Estado Islâmico (EI), principal grupo extremista ativo no país, duplicou o território que controla, segundo dados da ONU.

Economicamente a situação também não costuma melhorar. Em Burkina Faso, o crescimento econômico em 2022 foi de 2,5%, contra 6,9% do ano anterior, antes da tomada de poder.

Sem falar na erosão das liberdades individuais. Burkina Faso, por exemplo, caiu 17 posições em relação ao ano passado no ranking anual de liberdade de imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras, ocupando a 58ª posição atualmente. O Mali caiu duas posições e é agora o 113º entre 180 países.

Nesse sentido, Tiseke Kasambala, diretora de programas para a África do watchdog Freedom House, diz que os golpes levam a “um colapso do Estado de Direito, um aumento de prisões e detenções arbitrárias, proibições de protestos pacíficos e impunidade para violações dos direitos humanos cometidas por forças militares.”

Adekoya afirma que a solução para o problema de muitos países da África nem passa por mudanças drásticas por parte dos governos. “As pessoas estão pedindo somente alguma ligeira melhora em suas vidas, alguma ligeira sensação de segurança, além de eleições livres e justas.”

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