Este artigo foi publicado originalmente no site do Jornal da PUC-SP.
*por Gustavo Oliveira, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP)
O mandato presidencial de Donald Trump se aproxima de seu encerramento com um extenso histórico de turbulências. No rol de polêmicas da atual administração norte-americana, a Ucrânia ocupa lugar de destaque. O país esteve nada menos do que no centro do processo de impeachment de Trump.
Cabe, de início, recapitular a trama. A controvérsia tem como um de seus elementos centrais Joe Biden, o oponente democrata de Trump na eleição presidencial norte-americana de 2020.
Na época em que foi vice-presidente de Barack Obama, Biden se envolveu intimamente com a política na Ucrânia, promovendo reformas políticas e econômicas no país. Em nome dos objetivos que declarava perseguir nesse sentido, Biden admitiu publicamente ter chantageado as autoridades ucranianas pela demissão do ex-procurador-geral Viktor Shokin, acusado em círculos ocidentais de obstruir o combate à corrupção na Ucrânia.
Concretizada em março de 2016, a saída de Shokin era uma das condições estipuladas por Biden e pelo governo norte-americano para a concessão de um empréstimo à Ucrânia, que tinha como presidente na época Petro Poroshenko.
Há, contudo, uma versão mais sórdida sobre o ocorrido. Shokin afirma que Biden buscava aparelhar a Procuradoria Geral ucraniana e que o real interesse do democrata em sua demissão era evitar que o órgão investigasse irregularidades na Burisma – uma empresa ucraniana do setor energético, com a qual Hunter Biden, filho do candidato, passou a ter lucrativas relações a partir de 2014.
Trump se agarrou a esta versão e solicitou ao novo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em julho de 2019, que as autoridades ucranianas investigassem a atuação dos Biden no país. O cumprimento dessa e de outras demandas, conforme diversos insiders da política norte-americana para a Ucrânia, foi uma condição imposta por Trump para conceder auxílio militar dos EUA ao país.
Informações negativas vindas da Ucrânia sobre Biden, que à época já aparecia como potencial candidato democrata para a eleição de 2020, poderiam, evidentemente, beneficiar Trump. Por isso, a publicização das maquinações de Trump chocou parte significativa da sociedade estadunidense – em especial e sem surpresa, os democratas e críticos do presidente.
Nascia, aí, o escândalo que ficou conhecido com “Ukrainegate”. Acusado de solicitar interferência externa na eleição dos EUA em benefício próprio, bem como de pôr a segurança do país em risco, Trump foi alvo do processo de impeachment capitaneado por congressistas democratas e lançado em setembro de 2019.
Em dezembro, a Câmara dos Representantes, de maioria democrata, chegou a aprovar o impeachment. A maioria republicana no Senado, instância final de decisão no processo, acabou garantindo a sobrevivência de Trump na Presidência, ao absolvê-lo das acusações em fevereiro de 2020.
‘Fitas de Derkach’ renovam polêmicas ucranianas na política norte-americana
A controvérsia ucraniana na política estadunidense poderia ter-se encerrado aí, mas seu espectro permaneceu latente. Os apoiadores de Trump continuaram, por exemplo, a buscar informações comprometedoras sobre Biden e os democratas na Ucrânia, mesmo após o fim do processo de impeachment.
Recentemente, novos desdobramentos nesse sentido vieram da Ucrânia. O deputado ucraniano Andrei Derkach, ligado a Rudolph Giuliani – advogado pessoal de Trump e colaborador do presidente na busca por malfeitorias dos democratas na Ucrânia –, divulgou, em 19 de maio e 22 de junho, gravações de conversas entre Poroshenko e Biden da época em que este último, como se diz no jargão político russo, era o principal “curador” (kurator) da política dos EUA para a Ucrânia.
No material divulgado, conhecido na Ucrânia como as “Fitas de Derkach”, Biden e Poroshenko discutem diversos aspectos das relações bilaterais e da política ucraniana. Entre eles, está justamente o caso Shokin. As gravações – cuja autenticidade não foi completamente negada nem pelo staff de Biden, nem, possivelmente, por Poroshenko – mostram como ele, de fato, cedeu a pressões de Biden e da administração Obama, ao demitir Shokin em troca do apoio financeiro à Ucrânia.
Nas divulgações de junho, constam também documentos que, segundo Derkach e seu parceiro Konstantin Kulik (um controverso ex-procurador ucraniano que também teve contatos com Giuliani), apontam para possíveis conexões entre os interesses dos Biden e supostas irregularidades e tentativas de corrupção em investigações sobre a Burisma na Ucrânia.
Apesar de não terem atraído grande atenção midiática, as revelações ecoaram nos EUA, suscitando – como na época do Ukrainegate –discussões sobre suas possíveis implicações para a política doméstica norte-americana. Enquanto apoiadores de Trump se aproveitaram do material para alfinetar o rival eleitoral do atual presidente, o staff de Biden minimizou a gravidade do material.
As gravações das conversas entre Biden e Poroshenko, que aparentam conter edições, de fato não contêm nada explicitamente relacionado à Burisma e são consistentes com declarações públicas de Biden sobre o caso Shokin.
Fazendo coro com o candidato democrata, reportagens na mídia liberal afirmam que tudo não passa de uma tentativa, por parte dos trumpistas e de seus aliados na Ucrânia, de requentar uma desacreditada teoria da conspiração. Os contatos de Derkach com Giuliani, bem como sua formação em uma instituição russa ligada às agências de segurança e Inteligência de Moscou, têm sido usadas para desqualificar o político ucraniano.
Além da similaridade do discurso, outros fatores também levantam suspeitas sobre uma articulação de Derkach com interesses trumpistas. A segunda rodada de publicações, por exemplo, ocorreu exatamente um dia antes do lançamento do aguardado livro de memórias de John Bolton, no qual o ex-conselheiro de segurança nacional de Trump desfere duras críticas ao presidente – inclusive sobre episódios como o Ukrainegate. Além disso, Derkach, em suas coletivas de imprensa, também parece se dirigir ao público dos EUA, ao falar nos custos, para os “contribuintes norte-americanos”, da política democrata para a Ucrânia.
Por fim, um site vem divulgando traduções para o inglês das conferências de Derkach, bem como outros materiais a elas relacionados (como as conversas de Biden e Poroshenko e dados sobre o que Derkach diz serem redes de corrupção na Ucrânia com participação de democratas e oficiais estadunidenses).
As divulgações também motivaram a publicação de uma carta aberta no site do influente think tank Atlantic Council, assinada por ex-embaixadores dos EUA em Kiev. Os autores condenaram a promoção de “narrativas falsas e tóxicas” voltadas para prejudicar as relações bilaterais e inserir a Ucrânia na política doméstica norte-americana.
Convergindo com este pensamento, Zelensky buscou sair pela tangente. O presidente afirmou que a Ucrânia se distanciaria de qualquer tipo de envolvimento na política doméstica norte-americana. Similarmente, a procuradora-geral ucraniana, Irina Venediktova, declarou que investigações lançadas sobre os contatos entre Poroshenko e Biden seriam conduzidas de forma a não constituir um fator político na eleição dos EUA.
A multidimensional influência dos EUA na Ucrânia Pós-Maidan
Em meio a este foco nas implicações para a política doméstica norte-americana, uma dimensão importante – e irônica, levando-se em conta o ferrenho discurso de “apoio à soberania ucraniana” na política externa norte-americana – passou largamente batida na repercussão das “Fitas de Derkach” nos EUA: a relação de subordinação que o governo estadunidense buscava impor sobre a Ucrânia, ilustrada pela submissão de Poroshenko a Biden.
A questão da influência dos EUA tem tido muito mais destaque na maneira pela qual as gravações publicadas por Derkach vêm repercutindo na Ucrânia.
Nesse sentido, o material se soma a vários acontecimentos e relatos anteriores que apontam para o amplo alcance da mão de Washington em Kiev – o que, por sua vez, vai muito além de questões pontuais como a que motivou o Ukrainegate e tem ocorrido tanto sob administrações democratas, quanto republicanas.
O plano de fundo subjacente às expectativas de relacionamento patrão-cliente entre EUA e Ucrânia sugerido pelos contatos entre Biden e Poroshenko – e Trump e Zelensky – remonta ao período do (Euro)Maidan, os protestos iniciados no final de 2013 que acabaram se desdobrando na chegada ao poder de um governo pró-ocidental na Ucrânia, em fevereiro de 2014.
Já naquele período, as aspirações norte-americanas por influência sobre a Ucrânia podiam ser enxergadas em episódios como o apoio prestado pessoalmente aos manifestantes por oficiais estadunidenses, como a diplomata Victoria Nuland, o embaixador em Kiev, Geoffrey Pyatt, e o falecido ex-senador republicano John McCain, um notório “falcão” antirrusso. Em uma famosa conversa vazada na época, Nuland e Pyatt chegam a discutir a montagem do governo na Ucrânia – que, coincidentemente, veio a ser formado em linhas similares à discussão em questão.
Uma vez no poder, as forças pró-ocidentais ucranianas adotaram políticas alinhadas aos interesses dos EUA em diferentes áreas. Diversas medidas econômicas consonantes com o receituário do Fundo Monetário Internacional (FMI), do qual Biden era um ferrenho promotor, foram adotadas.
No campo de segurança e defesa, a Ucrânia, ainda em 2014, abandonou a política de não participação em alianças militares afirmada na época de Viktor Yanukovich (presidente derrubado em fevereiro de 2014) e progressivamente consolidou, nos anos seguintes, o objetivo de acesso à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Pela via bilateral, a Ucrânia recebeu, de 2014 a 2019, mais de 1,6 bilhão de dólares em assistência de segurança norte-americana. Durante o governo Obama, também foram lançados programas de treinamento e reforma das Forças Armadas ucranianas de acordo com padrões da OTAN.
Neste contexto, a imprensa ucraniana relatava como a embaixada e oficiais norte-americanos passaram a dar diretrizes de políticas e a influenciar a composição da burocracia e do governo ucranianos. Tais relatos foram reforçados pelas gravações divulgadas por Derkach, que mostram como Poroshenko dizia pautar sua atuação política por promessas feitas a Biden – de quem recebia instruções e a quem reportava o andamento de processos políticos na Ucrânia (como a adoção de reformas demandadas pelo FMI).
Poroshenko e Biden discutem, também, a interferência dos EUA nos bastidores da política ucraniana em favor do então presidente ucraniano. Os dois tratam, ainda, da política de quadros do governo ucraniano (inclusive em altos cargos, como os de primeiro-ministro e de procurador-geral) e da gestão da empresa estatal de gás e petróleo do país.
Elementos de alinhamento da Ucrânia aos interesses dos EUA, bem como de influência norte-americana na política ucraniana, continuaram sob Trump e Zelensky (presidentes, respectivamente, desde janeiro de 2017 e maio de 2019).
Durante seu primeiro ano, em troca de auxílio financeiro, o governo Zelensky também se comprometeu com a agenda do FMI. Isto incluiu a aprovação da impopular liberalização do comércio de terras e a aprovação de uma lei (elogiada pela embaixada dos EUA) que efetivamente reduziu a influência de Igor Kolomoisky – um controverso “oligarca” ucraniano malvisto em círculos ocidentais e acusado de lavagem de dinheiro nos EUA – no setor financeiro do país.
Zelensky também vem dando continuidade à política de busca pelo acesso à OTAN (apesar de o tema continuar sendo divisivo na sociedade ucraniana), bem como às reformas das Forças Armadas ucranianas em linha com os padrões da aliança.
No último dia 12 de junho, a Ucrânia se tornou uma Enhanced Opportunities Partner da OTAN, outro passo que subtende modificações na legislação ucraniana nos setores de segurança e defesa. Já pela linha bilateral, a administração Trump não apenas manteve programas de treinamento, como aprovou a transferência de equipamento militar letal – embora com restrições de uso – para a Ucrânia.
A cooperação em segurança também subtende a ingerência norte-americana no aparato estatal ucraniano, uma vez que a assistência estadunidense é condicionada à execução de reformas nas Forças Armadas locais. Consultores norte-americanos também foram convidados para projetos de reformas na indústria de armamentos ucraniana.
Os EUA vêm, ainda, investindo na modernização da infraestrutura naval ucraniana com vistas a aprimorar o acesso de forças norte-americanas e da OTAN ao Mar Negro pela costa da Ucrânia. Por fim, houve esforços norte-americanos para enquadrar a Ucrânia na disputa tecnológica com a China: a administração Trump buscou evitar o controle de investidores chineses sobre uma grande empresa aeroespacial ucraniana.
A ingerência estadunidense em assuntos domésticos ucranianos também pôde ser observada em casos como as tentativas, por parte de oficiais norte-americanos e de Giuliani, de eliminar a potencial influência de Kolomoisky na administração Zelensky.
Posteriormente, contudo, apareceram sinais de uma tentativa de aproximação entre Kolomoisky e Giuliani, motivada justamente pela busca por informações contra Biden. Por fim, a participação de William Taylor, então encarregado de negócios da embaixada dos EUA em Kiev, na apresentação do programa de reforma da Procuradoria Geral ucraniana em dezembro de 2019, simbolizou o envolvimento norte-americano também nos assuntos judiciários ucranianos.
Ucrânia sob ‘administração externa’ dos EUA?
Em conjunto, fatores como os expostos acima têm sido usados por críticos dos governos pós-Maidan e círculos (pró-)russos para denunciar o que veem como a “administração/controle externo” (do russo vneshnee upravlenie) estabelecida pelos EUA sobre a Ucrânia desde o Maidan.
Além de Derkach, a expressão tem adeptos famosos como o presidente russo, Vladimir Putin e, particularmente, Viktor Medvedchuk, um oligarca, deputado e líder do partido Plataforma de Oposição – Pela Vida (OPZZh).
O OPZZh, que tem figurado atrás somente do partido de Zelensky nas preferências do eleitorado ucraniano, é atualmente o principal partido pró-russo do país, com popularidade concentrada em suas regiões leste e sul – isto, é, as áreas de maior tendência russófona/russófila na Ucrânia.
Amigo pessoal de Putin, Medvedchuk, que está na lista de sanções norte-americanas desde 2014, tem sido certamente o principal difusor do discurso sobre o vneshnee upravlenie na Ucrânia. Conhecido como “compadre de Putin” (uma de suas filhas tem o presidente russo como padrinho de batismo), o líder do OPZZh estrelou o controverso documentário Revealing Ukraine, no qual é entrevistado pelo famoso cineasta norte-americano Oliver Stone (também conhecido por visões simpáticas a Putin).
O filme, de evidente caráter propagandístico (foi lançado, inclusive, na época da eleição parlamentar ucraniana de julho de 2019), já tem mais de um milhão de visualizações no YouTube e denuncia, de forma convergente com a narrativa trumpista, a atuação de Biden e da administração democrata na Ucrânia. Em linha com esta visão, canais de televisão ligados a Medvedchuk também estiveram entre os principais meios a cobrirem as “Fitas de Derkach” no país.
O discurso sobre a “administração externa” dos EUA sobre a Ucrânia possui uma significativa dose de exagero. Casos como o conflito entre o ex-procurador-geral ucraniano Yuri Lutsenko e a ex-embaixadora norte-americana Marie Yovanovitch na era Poroshenko, assim como a política de quadros de Zelensky – que, por diversas vezes, contrariou os interesses do governo dos EUA –, sugerem que a influência norte-americana pode encontrar resistência e ser obstruída por forças políticas ucranianas.
Conotações e interesses políticos e ideológicos à parte, a expressão não é totalmente desprovida de fundamento, como indicam os elementos trazidos ao longo deste texto. Seja sob democratas, seja sob republicanos, Biden ou Trump, os EUA têm buscado enquadrar a Ucrânia no sistema de poder internacional norte-americano.