Vladimir Putin está finalmente conseguindo a Internet que deseja

Artigo destaca aposta do governo russo em aplicativos e serviço nacionais e a rejeição cada vez maior às versões ocidentais desses mecanismos

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no jornal The Washington Post

Por Andrei Soldatov e Irina Borogan*

Em 16 de setembro, um dia antes do início da eleição parlamentar da Rússia, membros da câmara alta do parlamento russo convocaram representantes do Google e da Apple para repreendê-los por supostamente “interferirem” na votação. A ofensa ostensiva das empresas de tecnologia: permitir que os usuários acessem um aplicativo de assistência à votação criado por apoiadores do líder da oposição preso, Alexei Navalny. No final, ambas as empresas desistiram e removeram o aplicativo de suas lojas online.

Grande parte da cobertura resultante retratou a repressão de Moscou às duas plataformas do Vale do Silício como apenas mais uma parte do ataque mais amplo do governo à liberdade de expressão. Mas focar nesse aspecto, por mais preciso que seja, corre o risco de perder uma história maior. O Kremlin tomou uma decisão estratégica de separar a Internet russa – popularmente conhecida como Runet – do resto do ciberespaço.

Para ser claro: o Kremlin não quer uma versão russa do “Grande Firewall” da China ou isolar o Runet inteiramente do mundo exterior. Em vez disso, Vladimir Putin deseja que seus súditos confiem em serviços e aplicativos russos, para se comunicarem por meio de plataformas de mídia social russas, assistirem a vídeos em plataformas russas e pesquisarem informações usando serviços russos. Dessa forma, ele espera, eles dependerão da versão da realidade que as autoridades russas desejam promover.

As autoridades russas já fizeram do motor de busca doméstico Yandex a escolha padrão nos smartphones vendidos na Rússia. A partir do próximo ano, de acordo com as diretrizes já emitidas pelo Ministério da Educação, professores e administradores escolares russos poderão se comunicar com pais e filhos apenas por meio de plataformas de mídia social russas. O Kremlin também está incentivando o desenvolvimento de uma alternativa russa ao YouTube. As autoridades estão colocando suas esperanças no RuTube, um projeto financiado pelo grupo de mídia Gazprom, controlado por amigos próximos de Putin. (Os legisladores russos parecem alheios ao fato de que já existe um RuTube – um canal do YouTube controlado pela drag queen americana RuPaul Charles.)

Ninguém deve confundir isso com um esforço para dar aos russos mais opções desenvolvendo plataformas locais. A verdadeira intenção da campanha vem claramente do homem que foi escolhido para liderar o projeto RuTube: Alexander Zharov, o ex-chefe da Roskomnadzor, a agência de censura da Internet da Rússia. O Kremlin tem lançado as bases para seu impulso há algum tempo; inclusive, o Roskomnadzor ordenou que os provedores regionais de serviços de Internet relatassem sobre a infraestrutura do Google na Rússia em 2020. Em uma reunião com editores russos em fevereiro, Putin deu a entender que estava disposto a considerar a proibição de algumas plataformas globais – mas que faria isso apenas quando o país tivesse equivalentes domésticos. Esse momento quase chegou.

O presidente Vladimir Putin em encontro com oficiais da Defesa em seu escritório em Sochi, Rússia, maio de 2021 (Foto: Kremlin/Sergei Ilyin)

Há um precedente histórico sinistro para a estratégia atual do presidente russo. Em nosso livro de 2015 “The Red Web” (A Internet Vermelha, em tradução livre), descrevemos como o jovem físico russo Vladimir Fridkin inventou a primeira máquina copiadora da União Soviética na década de 1950, logo após a morte de Joseph Stalin. Por um tempo, todos ficaram felizes com a invenção de Fridkin e as autoridades consideraram colocar seus dispositivos em produção em massa.

Mas logo a KGB emitiu uma ordem para destruir a fotocopiadora de Fridkin, e o protótipo foi feito em pedaços. A lógica dos policiais secretos era evidente: eles estavam preocupados que as pessoas pudessem usar o dispositivo para compartilhar informações fora do controle do Partido Comunista. A invenção de Fridkin foi morta por medo de que o conhecimento pudesse se tornar gratuito.

O Partido Comunista pagou um alto preço por essa decisão mais tarde, quando o partido foi forçado a passar a comprar máquinas Xerox no exterior. Mas a União Soviética pagou um preço ainda maior ao perder sua corrida tecnológica mais ampla com o Ocidente.

Na década de 1990, a Rússia adotou muitas tecnologias ocidentais. Isso, por sua vez, possibilitou o crescimento surpreendente das empresas de tecnologia russas, como Yandex, Kaspersky Lab e muitas outras. Agora, é o próprio sucesso dessas empresas que deixa a comitiva de Putin confiante de que pode apostar no isolamento mais uma vez.

A experiência soviética de autarquia tecnológica foi um desastre. O Kremlin poderia descobrir uma maneira de fazer funcionar desta vez? Putin parece pensar assim. As autoridades russas fizeram um grande progresso na introdução de tecnologias de vigilância de ponta produzidas internamente, incluindo sistemas de reconhecimento facial, que eles usaram com sucesso para identificar manifestantes.

Hoje em dia, Putin não precisa destruir o equivalente da Internet às máquinas Xerox; ele tem um certo número de alternativas russas que pode explorar, pelo menos por algum tempo. Mas se o Kremlin conseguir isolar a Rússia do ciberespaço global, acabará por pagar em termos de desenvolvimento perdido. Pois essa é uma lição consistente da história russa: o país sempre se modernizou interagindo com o mundo exterior, não se isolando.

*Andrei Soldatov e Irina Borogan são co-autores de “The Red Web: The Struggle Between Digital Dictators and the New Online Revolutionaries”. (sem tradução em português

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