Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site The Atlantic
Por Yasmeen Serhan
Quando Joe Biden convocou sua Cúpula Pela Democracia, Narendra Modi estava entre os participantes. O primeiro-ministro indiano é o administrador da maior democracia do mundo. Qualquer conversa sobre o declínio democrático global e o que pode ser feito para revertê-lo estaria incompleta sem sua participação.
O envolvimento de Modi na cúpula, no entanto, é peculiar – estranho, até – considerando o papel que ele desempenhou na precipitação do declínio democrático. Desde que chegou ao poder em 2014, Modi supervisionou uma transformação constante da Índia da democracia secular imaginada por seus fundadores em um Estado nacionalista hindu majoritário – que demoniza seus grupos minoritários, mina as liberdades civis e esmaga a dissidência. A Freedom House, que fiscaliza a democracia, levou essa deterioração em consideração ao rebaixar a Índia a um país “parcialmente livre” no início deste ano. Embora alguns índices democráticos tenham começado a rotular a Índia como uma “democracia falha”, outros não consideram mais o país como uma democracia.
Esse tipo de retrocesso democrático pode frequentemente ser gradual e multifacetado. Talvez ninguém exemplifique melhor o que está acontecendo na Índia hoje do que Rana Ayyub. A premiada jornalista investigativa, autora e bicho-papão do partido governante de Modi, o Bharatiya Janata (BJP), emergiu como uma das principais cronistas do declínio democrático da Índia na imprensa internacional; seu trabalho apareceu na capa da Time e ela escreve colunas frequentes para o The Washington Post. O jornalismo de Ayyub ganhou seus aplausos por resiliência e coragem e também a sujeitou a uma torrente de abusos online, incluindo doxing (ação de revelar online informações pessoais sem a permissão da vítima) e ameaças de morte. Recentemente, ela foi alvo de inúmeras denúncias criminais que, segundo ela, foram elaboradas para intimidá-la e mantê-la em silêncio.
Para seus detratores, Ayyub nada mais é do que uma ativista difamando a imagem da Índia no cenário mundial. Para seus apoiadores, ela é uma voz rara falando a verdade ao poder em um ambiente de mídia sujeito à autocensura. Mas Ayyub representa mais do que apenas um termômetro da liberdade de imprensa no país. Como jornalista, muçulmana e crítica vocal da agenda hindu-nacionalista do governo, ela representa muitas das identidades que não são mais toleradas na Índia de Modi hoje. A história dela é a história sobre o que seu país está se tornando e o que pode perder.
Falar com Ayyub é ter um vislumbre do que significa ser jornalista em um país que está em queda livre democrática. O mundo em que ela habita ainda é ostensivamente uma democracia: a Índia tem eleições livres e justas, instituições independentes e uma Constituição que salvaguarda a liberdade religiosa e os direitos dos grupos minoritários. Existe uma imprensa privada, embora em apuros, e uma oposição política visível, embora dividida. E, apesar do fato de que a eleição de 2019 deu a Modi e seu partido uma maioria parlamentar impressionante, o primeiro-ministro não está isento de pressão política.
Mas a democracia em teoria difere da democracia na prática, e, por trás dessa “aparência de democracia”, Ayyub me disse, existem rachaduras significativas. Uma das mais proeminentes surgiu em 2019, depois que o governo indiano revogou abruptamente a autonomia constitucionalmente consagrada de Jammu e Caxemira – um movimento que os observadores dentro e fora do país consideraram como a forma de Modi de usurpar o poder do único Estado de maioria muçulmana do país. Outra veio naquele mesmo ano na forma da Lei de Emenda da Cidadania, que excluía os muçulmanos em países vizinhos de buscar asilo na Índia, na prática estabelecendo um teste religioso para a cidadania. Talvez a rachadura mais visível tenha sido a disposição do governo de reprimir a dissidência, seja por meio do envio de polícia e forças de segurança para reprimir protestos ou da intimidação, prisão e detenção de jornalistas que procuram cobrir histórias que lançam sobre Modi ou o BJP uma luz de crítica.
Tendo crescido em uma família muçulmana em Mumbai, Ayyub há muito tempo estava ciente da crescente onda de nacionalismo hindu. Em uma entrevista com Dexter Filkins, que traçou o perfil de Ayyub para The New Yorker em 2019, ela descreveu se sentir desamparada quando, aos 9 anos, ela e sua família tiveram que fugir da violência hindu-muçulmana que se seguiu à destruição da histórica Mesquita Babri por nacionalistas hindus. Essa foi a primeira vez em que ela realmente entendeu sua identidade como algo diferente, ela disse a Filkins. Essa tensão comum se tornaria central para seu trabalho décadas depois. Em 2011, ela passou oito meses posando como cineasta pró-Modi em seu Estado natal de Gujarat, no oeste da Índia, e se abrigou no círculo hindu-nacionalista de Modi. Suas reportagens envolviam Modi, então ministro-chefe do Estado, e muitos de seus aliados de cumplicidade nos distúrbios de Gujarat em 2002, que resultaram na morte de mais de mil pessoas, a maioria das quais era muçulmana. (Modi nunca foi acusado em conexão com os distúrbios e não expressou “nenhuma culpa” sobre como ele lidou com a violência que resultou deles.) Na época, Ayyub estava trabalhando para a revista investigativa Tehelka, onde ela havia publicado anteriormente uma denúncia que culminou na prisão de Amit Shah, o ministro do Interior de Gujarat e o conselheiro mais próximo de Modi, em conexão com o assassinato de um homem muçulmano pela polícia de Gujarat. (O caso acabou sendo arquivado; Shah é agora o ministro do Interior da Índia). Mas a Tehelka não quis publicar a investigação mais recente de Ayyub sobre Modi, nem qualquer outra pessoa. “Ninguém faria isso, porque eles tinham medo de Modi”, disse Ayyub. (Os editores da Tehelka não puderam ser encontrados para comentar.)
Então, em 2016, dois anos após a ascensão de Modi ao poder, Ayyub decidiu publicar a investigação por conta própria na forma de um livro chamado Gujarat Files: Anatomy of a Cover Up (sem tradução no Brasil). Tornou-se um best-seller e, desde então, vendeu 400 mil cópias em mais de uma dúzia de idiomas, de acordo com Ayyub. O livro está atualmente em processo de adaptação para um documentário, com lançamento previsto para 2022.
Embora Gujarat Files tenha ganhado reconhecimento e elogios internacionais para Ayyub, também a estabeleceu como inimiga do projeto hindu-nacionalista de Modi – um status que ela disse que a colocou na ponta receptora de torrentes de intimidação e abusos, tanto online quanto offline. Em 2018, ela se tornou o alvo de um deepfake em que sua imagem foi adulterada em uma mulher em um vídeo pornográfico. O vídeo falso foi amplamente divulgado, inclusive por membros do BJP. Não muito depois disso, alguém postou o número de telefone e endereço de Ayyub online. Embora ela possa nunca descobrir quem está por trás do vídeo ou do doxing, ela disse que a maioria das contas online que os compartilham pertenciam a apoiadores de Modi e seu partido.
“Sou alguém que está mudando a opinião do mundo em relação à Índia”, disse Ayyub. “A única maneira que eles acham que podem me impedir é com estupros e ameaças de morte, que agora fazem parte da minha vida”.
A intimidação não parou por aí. Ayyub me contou que tem sido seguida por pessoas e veículos, tanto na Índia quanto no exterior. Desde junho, ela também enfrenta uma série de acusações criminais. A primeira diz respeito a um vídeo viral de um homem idoso que afirma ter sido vítima de um ataque islamofóbico, que ela e outros jornalistas e legisladores compartilharam no Twitter. A polícia do Estado de Uttar Pradesh, no norte do país, alega que compartilhar o vídeo online foi uma tentativa de “destruir a harmonia comunitária”. Ela enfrenta diferentes acusações de evasão fiscal e de apropriação indébita de fundos provenientes de seu trabalho humanitário durante a pandemia. Os casos são todos falsos, disse ela. Membros de sua família tiveram suas contas bancárias congeladas porque tinham transações financeiras com ela. Ela desistiu de deixar Mumbai com medo de ser chamada para interrogatório ou mesmo presa. “É como se você estivesse vivendo como um fugitivo em sua própria casa”, disse ela.
Esses tipos de investigações arbitrárias e punitivas – contra jornalistas, defensores dos direitos humanos, ativistas e oponentes políticos – se tornaram o padrão na Índia de Modi, onde o governo armou a polícia e os tribunais do país em uma tentativa de silenciar seus críticos. “Eles não vão atrás de você pelo que você escreveu”, disse-me Salil Tripathi, um jornalista indiano e ex-presidente do Comitê Internacional de Escritores em Prisões, mas sim “por uma violação fiscal, uma violação regulatória ou outra coisa que parece crime, por isso é muito difícil angariar a simpatia do público ao seu redor”.
Uma das outras táticas favoritas do governo é aplicar a lei de sedição do país, um resquício do colonialismo britânico que foi reaproveitado por outros governos pós-coloniais como meio de sufocar a dissidência. No caso da Índia, as acusações de sedição, que é vagamente definida como qualquer ação que incite ou tente incitar a insatisfação em relação ao governo, aumentaram 28% desde que Modi assumiu o cargo, de acordo com dados coletados pela agência independente Article14. As acusações de sedição raramente resultam em condenação (o que acarreta uma pena máxima de prisão perpétua), embora o veredito pouco importe, disse Tripathi. Para o governo, “todos esses processos viram punição”.
A última vez em que jornalistas indianos enfrentaram esse tipo de repressão estatal foi em 1975, quando a então primeira-ministra Indira Gandhi declarou estado de emergência, concedendo-se poderes amplos, incluindo a capacidade de prender seus oponentes e amordaçar a imprensa. Embora a Índia não tenha retornado a esse estado ditatorial desde então, a liberdade de imprensa no país, que ocupa a 142ª posição entre 180 países no Índice de Liberdade de Imprensa Mundial da ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF), está diminuindo. Muitas das pessoas com quem falei traçaram paralelos entre a situação da liberdade de imprensa durante os anos 70 e a situação atual.
“Há uma emergência não declarada neste país e uma atmosfera prevalecente de medo”, disse-me Yashwant Sinha, um ex-ministro do governo que deixou o BJP de Modi em 2018 em protesto contra a virada iliberal do partido, observando que embora as empresas de mídia privadas ainda existem na Índia, elas têm interesse em evitar a retaliação do governo, o que acaba levando à autocensura.
Apesar de todos os desafios que Ayyub enfrentou, ela tem mais sorte do que muitos de seus colegas indianos. Embora ela tenha sido amplamente censurada na Índia, onde ela me diz que não pode ser publicada pela grande mídia, sua plataforma internacional é muito maior, proporcionando a seu espaço alguns dos veículos e emissoras de maior visibilidade do mundo. Ayyub ingressou recentemente na Substack, onde é curadora de um boletim informativo dedicado em parte a narrar a virada antidemocrática de seu país. “Não quero que eles tenham o prazer de saber que me silenciaram”, ela me disse, “então minha única resposta a eles é o meu jornalismo”.
Como jornalista independente, ela não enfrenta a perspectiva de ser censurada ou demitida do emprego se não seguir uma linha política. Talvez o mais importante de tudo, ela evitou o destino de seus colegas definhando na prisão, como Siddique Kappan, uma jornalista indiana que foi presa no ano passado sob a acusação de sedição e conspiração para incitar a violência enquanto tentava cobrir o suposto estupro de uma Dalit (pejorativamente conhecida como “intocável” no sistema de castas da Índia), de 19 anos, em Uttar Pradesh.
A notoriedade internacional de Ayyub não acalma os temores dos defensores da imprensa por sua segurança. Ela continua sendo uma das principais preocupações da Repórteres Sem Fronteiras, que pressionou as autoridades indianas para protegê-la de novas acusações e assédio. “Quando vimos o que estava acontecendo com Rana e outras jornalistas, pensamos que era muito importante reagir, porque definitivamente não queremos outra Gauri Lankesh na Índia”, disse Daniel Bastard, diretor da Repórteres Sem Fronteiras, referindo-se ao assassinato em 2017 de Lankesh, uma jornalista e crítica vocal de Modi, fora de sua casa em Bangalore. “Estamos muito, muito preocupados.”
Se os grupos de liberdade de imprensa não conseguem chegar a Modi, talvez Biden consiga. Isso, pelo menos, parece ser parte do raciocínio por trás do convite de Modi à Cúpula Pela Democracia de Biden, que exortará os países participantes a “anunciarem novos compromissos, reformas e iniciativas de acordo com os três pilares da Cúpula: fortalecer a democracia e defender-se do autoritarismo, lutando contra a corrupção e promovendo o respeito pelos direitos humanos”, disse-me um porta-voz do Departamento de Estado, acrescentando que “a parceria EUA-Índia assenta no compromisso comum de defender o Estado de Direito e os valores democráticos”.
Modi, sem dúvida, fará grandes declarações sobre o compromisso da Índia com a democracia e a liberdade, que ele recentemente descreveu como sendo essenciais para o “etos civilizacional da Índia”. Mas ninguém com quem falei expressou qualquer otimismo de que a cúpula ou Biden poderia obrigar Modi a mudar de rumo. A Índia há muito tempo não é receptiva às críticas externas, mesmo de seus parceiros próximos. Qualquer mudança significativa deve ser conduzida de dentro.
A reforma interna será um desafio. Apesar de alguns reveses políticos, Modi continua a ser popular. Muitas pessoas podem nem mesmo detectar que algo está fundamentalmente errado com a saúde da democracia indiana hoje. “A maioria das pessoas confunde democracia com eleições periódicas”, disse Sinha, observando que o que é menos apreciado são os mecanismos que permitem a existência da democracia: um judiciário independente, liberdades civis consagradas constitucionalmente, uma imprensa livre.
Sem essas coisas, a Índia pode ser uma democracia apenas no nome. No que diz respeito a Ayyub, já é um. “Há um verniz de democracia”, disse ela. “Abaixo disso está o fascismo.”