China censura funeral de médico militar que revelou a gravidade da Sars

Notícia sobre a morte de Jiang Yanyong foram censuradas no país, que também teve funeral discreto sob ordens das autoridades

Jiang Yanyong, o ex-cirurgião militar que denunciou o encobrimento da epidemia de Sars (síndrome respiratória aguda grave) em 2003 por Beijing, morreu no sábado (11), aos 91 anos, em decorrência de uma pneumonia. Após o falecimento, autoridades chinesas passaram a pressionar a família do médico para que uma “abordagem discreta” fosse adotada na cerimônia fúnebre, segundo informações da rede Radio Free Asia (RFA).

Yanyong, ex-professor de cirurgia no Hospital Geral do Exército de Libertação do Povo (ELP), teve negada uma vaga de cremação no Cemitério Revolucionário de Babaoshan, onde funcionários de alto escalão e figuras importantes da política chinesa geralmente descansam.

“Nenhuma cerimônia fúnebre pública será permitida. Apenas parentes podem participar”, diz uma orientação enviada à família de Jiang pela autoridades na semana passada, que acrescenta: “Não haverá tributos florais permitidos do público em geral e nenhuma entrevista à mídia concedida”.

Em sua trajetória como médico, Jiang Yanyong também atendeu vítimas feridas a tiros no Massacre da Praça da Paz Celestial (Foto: Jiang Yanyong/Flickr)

As homenagens ocorrem em um funeral privado, em uma sala especialmente construída para isso no Hospital Geral do PLA nesta quarta-feira (15), disse uma pessoa próxima ao assunto à RFA.

Notícias sobre o falecimento de Yanyong e até mesmo seu nome sofreram censura em seu país natal, evidenciando como, mesmo em idade avançada, o médico era tido como uma figura politicamente temida pelas autoridades.

O cirurgião ficou internacionalmente conhecido há 20 anos. Em abril de 2003, enquanto o Partido Comunista Chinês (PCC) minimizava a extensão da epidemia de Sars no país, Yanyong escreveu uma carta revelando que os casos de contágio estavam muito acima dos oficialmente relatados pelo governo.

O documento, enviado por e-mail à emissora estatal chinesa CCTV e ao canal Phoenix Channel, de Hong Kong, foi ignorado, mas acabou chegando à mídia ocidental, que o publicou na íntegra, junto com reportagens sobre a verdadeira escalada do surto e os esforços de Beijing para ocultá-la.

O relatório obrigou Beijing a admitir que forneceu informações falsas, o que resultou na demissão do então ministro da Saúde e no afastamento do cargo prefeito da capital chinesa, bem como à introdução de medidas sanitárias rigorosas, que ajudaram a estancar a propagação do vírus (um “primo” do Sars-Cov-2, responsável pela pandemia de Covid-19) depois que casos importados já tinham sido registrados no exterior.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Sars infectou mais de oito mil pessoas em 29 países no ano de 2003, o que resultou em pelo menos 774 mortes. “Eu senti que tinha que revelar o que estava acontecendo, não apenas para salvar a China, mas para salvar o mundo”, disse Yanyong sobre suas ações.

Crítico do regime

Anos antes, em 1989, Yanyong atuou como cirurgião no Hospital Geral do ELP, onde participou do resgate e tratamento dos feridos durante o Massacre da Praça da Paz Celestial, quando tanques do exército deram um fim brutal a protestos que vinham se estendendo por semanas em Beijing. 

Em 2019, nos 30 anos do massacre, Yanyong fez críticas ao episódio – um assunto proibido na China – ao escrever uma carta ao presidente chinês Xi Jinping, na qual relatou ter atendido 89 pacientes com ferimentos à bala. Ele chamou o evento de “crime” e classificou o acontecimento histórico como “um grande erro do PCC”. Dados do governo britânico reproduzidos pela BBC falam em dez mil vítimas fatais. O médico foi colocado em prisão domiciliar logo após a manifestação.

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