Mais de 55 mil casas foram queimadas pela junta militar de Mianmar, diz entidade

Ataques realizados pelas forças de segurança destroem inclusive os estoques de alimento, levando muitos a passar fome

A junta militar que assumiu o poder em Mianmar no golpe de Estado de fevereiro de 2021 queimou mais de 55 mil casas de civis desde então. Os números são parte de uma pesquisa realizada pela organização independente Data For Myanmar (Dados por Mianmar, em tradução literal), cujas informações foram reproduzidas pela rede Radio Free Asia (RFA).

A entidade diz que usou dados de fontes publicamente disponíveis, que posteriormente foram checados com base em relatos de mídia. “Em alguns casos, procuramos organizações locais de ajuda e monitores de direitos humanos para verificar os incidentes. Para incidentes graves, usamos o Fire Information for Resource Management System (FIRMS), da NASA, para verificar os incidentes”.

A região de Sagaing foi a mais atingida pelos incêndios causados pelas forças de segurança nacionais nesse intervalo de dois anos. Foram 43.292 casas queimadas por lá entre 1º de fevereiro de 2021 e 31 de janeiro de 2023, período abordado pelo relatório.

Uma moradora de Sagaing diz que está desabrigada e sem comida desde que perdeu sua propriedade. “Temos sete membros da família, incluindo dois filhos, então fizemos um telhado com uma manta de flanela, e os telhados de zinco queimado foram usados ​​para paredes. Agora estamos todos enfrentando dificuldades profundas”, disse ela, que pediu para ter a identidade preservada por questão de segurança.

Já um cidadão da região de Magway, onde 8.863 casas foram queimadas, diz que até os estoques de alimento foram destruídos pela junta. “Eu moro na floresta. Construí uma tenda e impermeabilizei o telhado. Temos que viver assim”, disse o homem, que também não quis se identificar.

Kyaw Win, diretor executivo da ONG Burma Human Rights Network (Rede de Direitos Humanos da Birmânia, em tradução literal), diz que as ações dos militares configuram crimes contra a humanidade. “Incendiar aldeias, prender pessoas e matar pessoas não são mais crimes de guerra. Crimes de guerra são crimes cometidos contra o inimigo enquanto lutam em batalha”, explicou.

Presença das forças de segurança de Mianmar em um vilarejo da cidade de Sittwe (Foto: WikiCommons)
Milhares de mortos

Também por ocasião dos dois anos de golpe, a ONG tailandesa Associação de Assistência aos Prisioneiros Políticos (AAPP) divulgou no início do mês passada um relatório apontando que 2.989 pessoas foram mortas em meio à repressão estatal desde fevereiro de 2021. Entre as vítimas há desde bebês com menos de um ano até pessoas acima dos 90, sendo que 372 dos assassinatos foram cometidos contra mulheres.

As causas das mortes são variadas: disparos de armas de fogo de pequeno porte ou de artilharia pesada por parte das forças armadas, tortura durante interrogatório, ataques aéreos e muitos casos de pessoas queimadas vivas. Há ainda mortes cujas causas não foram identificadas, invariavelmente porque as vítimas eram mantidas como prisioneiras pelas forças do governo.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido o partido de assumir o poder antes, derrubou e prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, que posteriormente foi julgada e sentenciada a 33 anos de prisão.

O golpe deu início a protestos no país, respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais. As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o estado de direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar. Inicialmente, o golpe foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu bastante com a derrubada. Mas o cenário mudou desde então.

O governo chinês frequentemente se coloca ao lado da junta ao vetar resoluções que condenam a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral. A posição ficou evidente mais uma vez em dezembro de 2022, embora a China tenha optado por não vetar a resolução.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Entretanto, há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

Tags: