“Os militares de Mianmar mataram ilegalmente, detiveram arbitrariamente e roubaram civis enquanto lutam para conter a mais forte explosão de resistência armada desde o golpe de 2021.” A declaração foi feita na quinta-feira (21) pela ONG Anistia Internacional, segundo a qual a junta que governa o país asiático deveria ser investigada por crimes de guerra.
A Anistia chegou a tais conclusões após investigar as ações dos militares desde o golpe. No processo, entrevistou dez civis e analisou documentos como fotos, vídeos e imagens de satélite, através dos quais constatou prováveis ataques indiscriminados contra civis e bens civis. Também há indícios de uso de munições cluster, amplamente proibidas e condenadas.
Munições cluster, ou de fragmentação, se abrem no ar e despejam diversas submunições, pequenas bombas que atingem uma área consideravelmente maior a fim de ampliar o dano, reduzindo a chance de as pessoas se protegerem. Assim, mesmo que o alvo seja militar, a possibilidade de que civis sejam atingidos é consideravelmente maior.
A ONG afirmou que todas essas ações “deveriam ser investigadas como crimes de guerra.”
“Os militares de Mianmar têm um currículo manchado de sangue por ataques indiscriminados com consequências devastadoras para os civis, e sua resposta brutal a uma grande ofensiva de grupos armados se enquadra num padrão de longa data”, afirmou Matt Wells, diretor do Programa de Resposta a Crises da Anistia Internacional.
O regime militar que governa Mianmar enfrenta atualmente seu maior desafio desde o golpe de Estado de fevereiro de 2021. A manutenção do poder pela junta que governa o país está ameaçada devido aos recentes avanços obtidos por grupos rebeldes étnicos armados que lançaram uma ofensiva conjunta em outubro.
Segundo a agência Reuters, o presidente do Conselho de Administração do Estado, Myint Swe, afirmou em reunião do Conselho de Defesa e Segurança Nacional, em meados de novembro, que o país corre o risco de “ser dividido em várias partes” caso o governo não consiga “gerir eficazmente os incidentes que acontecem na região fronteiriça.”
Os insurgentes têm conquistado cada vez mais posições antes ocupadas pelos militares, assumindo o controle de armas e outros equipamentos que aumentam seu poder de fogo nos confrontos. O resultado é uma intensificação das hostilidades, com mais violência atingindo inclusive os civis.
Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), desde o dia 27 de outubro até o final da semana passada, ao menos 378 civis foram mortos, com mais 505 feridos e cerca de 660 mil deslocados. Estes últimos se somam aos quase dois milhões que já haviam sido deslocados anteriormente em todo o país.
Por que isso importa?
Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.
Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.
As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.
A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.
Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar, inclusive vetando resoluções que venham a condenar a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral, como no caso de dezembro de 2022.
Inicialmente, o golpe de Estado foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu financeiramente com a queda. Mas o cenário mudou rapidamente. Para não se distanciar da junta, Beijing classificou a prisão de Suu Kyi e de outros funcionários do governo como uma “remodelação de gabinete”, palavras usadas pela agência de notícias estatal Xinhua.
A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.