Nova lei de Hong Kong ameaça advogados, jornalistas e até estrangeiros, dizem analistas

Lei de segurança nacional mais severa está sendo preparada e tende a reduzir ainda mais as liberdades e direitos no território chinês e também no exterior

Começaram a emergir as primeiras diretrizes seguidas pelos legisladores de Hong Kong para formatação da nova lei de segurança nacional do território chinês. Entre elas, as perspectivas de que os acusados tenham mais dificuldade para se reunir com seus próprios advogados e de que a imprensa enfrente ainda mais restrições. Segundo analistas ouvidos pela rede Radio Free Asia, mesmo jornalistas estrangeiros estarão ao alcance do regime.

Na semana passada, o chefe do Executivo de Hong Kong, John Lee, anunciou o início do processo para futura redação do texto legal, que substituirá o atual, imposto pela China em 2020. A lei tende a ser ainda mais severa, punindo crimes como traição, insurreição, espionagem, roubo de segredo de Estado e interferência estrangeira.

Atualmente, o governo realiza uma consulta popular que se estenderá até o dia 28 de fevereiro, com um documento de 110 páginas enviado à Assembleia Legislativa. Somente depois disso será redigido o texto para análise, alterações e aprovação. Entretanto, autoridades locais comentaram a questão em uma emissora pró-Beijing nos últimos dias e deram algumas pistas do que virá pela frente.

“Liberte Hong Kong. Revolução dos nossos tempos”, diz o cartaz durante protesto por democracia em Hong Kong, julho de 2020 (Foto: WikiCommons)

Um dos objetivos do Legislativo honconguês é dificultar o acesso dos acusados a seus advogados, que na visão do governo local podem ser “cúmplices” dos infratores.

“Como resultado, eles poderiam continuar com atividades que põem em perigo a segurança nacional sob o pretexto de consultar um advogado”, afirmou o secretário de Justiça Paul Lam.

Outro alvo da futura legislação serão os jornalistas e as empresas de mídia, sobretudo se publicarem material relacionado a casos inseridos na lei de segurança nacional. Entrevistas com acusados, por exemplo, tendem a ser fiscalizadas, sob o argumento de não dar espaço para que os infratores divulguem suas ideias.

“Eles (os jornalistas e as empresas de mídia) podem ser vistos como fornecendo uma plataforma, ajudando-os e encorajando-os”, disse Lam.

Já o secretário de Segurança, Chris Tang, sugeriu que cidadãos que criticarem o governo também serão fiscalizados com maior rigor. Segundo ele, as pessoas têm o direito de se manifestar, mas com cautela. Caso comecem a “apimentar a questão”, declarou a autoridade, provocando “deliberadamente as emoções das pessoas”, tais atos podem ser considerado “incitação ao ódio.”

Este ponto da futura legislação é particularmente delicado, na opinião de Sang Pu, advogado e analista de questões contemporâneas. Ele diz que o texto vago na legislação é uma arma de Hong Kong para poder punir quem lhe convier.

“Muitas pessoas ficarão abrangidas por essa definição, que será alargada”, afirmou. “Basicamente, existe intenção criminosa se eles disserem que existe. Isso é intimidação em grande escala e foi totalmente concebido para eliminar qualquer voz que tente supervisionar o governo.”

Eric Lai, pesquisador do Centro de Direito Asiático da Universidade de Georgetown, diz que jornalistas que eventualmente entrevistem acusados podem ser enquadrados no mesmo crime. E diz que a futura lei, mesmo antes de ser redigida, já pode ser encarada como uma ferramenta repressiva ainda mais eficiente.

“O diabo está nos detalhes”, disse ele. “Se todas estas disposições forem incluídas [no teto legal], certamente será enorme o impacto na liberdade de imprensa.”

Estrangeiros na mira

Patrick Poon, pesquisador de direitos humanos da Universidade de Tóquio, entende que a nova lei colocará ao alcance de Hong Kong inclusive jornalistas estrangeiros, ameaçados de processo caso entrevistem dissidentes no exterior. Isso porque, na visão do governo chinês, mesmo a legislação atual tem alcance transnacional, o que se tornará ainda mais duro com o texto futuro.

A Anistia Internacional, que foi obrigada a fechar as portas em Hong Kong, já advertiu para o alcance da normativa legal vigente. Segundo a ONG, qualquer pessoa na Terra, “independentemente de nacionalidade ou localização, pode ser tecnicamente considerada como tendo violado a lei e pode ser presa e processada se estiver em uma jurisdição chinesa, mesmo para trânsito”.

Um caso ilustra bem essa questão. Em setembro de 2021, o empresário britânico Bill Browder foi alertado pelo Ministério das Relações Exteriores de seu país a não viajar para nações que honrem os tratados de extradição com Hong Kong. Os lugares de que foi afastado incluem democracias como África do Sul e Portugal. Ele poderia ser preso, extraditado e julgado em razão de seu apelo público para o Reino Unido reagir contra os abusos aos direitos humanos em Hong Kong.

Abaixo a democracia

A atual lei de segurança nacional foi uma resposta da China aos protestos populares de 2019 em Hong Kong, que inicialmente tinham como objetivo contestar uma lei de extradição que vinha sendo debatida e acabou derrubada.

Aos poucos, as manifestações ganharam maior abrangência, contestando a submissão ao regime chinês e a repressão estatal e clamando por democracia e independência. A resposta veio com o autoritarismo da lei de segurança nacional, que deu ao governo o poder de silenciar a oposição e encarcerar os críticos.

A normativa legal vigente classifica e criminaliza qualquer tentativa de “intervir” nos assuntos locais como “subversão, secessão, terrorismo e conluio”. Infrações graves podem levar à prisão perpétua. De acordo com a rede Deutsche Welle (DW), quase 300 pessoas foram presas acusadas de crimes abraçados pelo texto, sendo que mais de 30 foram julgadas e condenadas.

Mais que um desejo do governo, a substituição por nova lei é uma imposição jurídica. A necessidade de tal mecanismo está prevista no artigo 23 da Lei Básica do território, segundo o qual Hong Kong precisa estabelecer uma legislação própria para substituir a de Beijing.

O novo texto tem a perspectiva, por exemplo, de prever o crime de sedição, que não consta da lei atual. Devido à brecha legal, o Judiciário passou a adotar uma manobra jurídica para punir os cidadãos, usando os poderes conferidos pela lei chinesa para aplicar normas da era colonial que previam a sedição.

A nova lei também atenderá ao Partido Comunista Chinês (PCC) e a seu líder, o presidente chinês Xi Jinping. Em 2022, por conta do Dia Nacional da China, ele usou o discurso para destacar a importância da lei de segurança nacional, criticando os protestos de 2019 e alertando para o risco de eles se repetirem.

“Após experimentar vento e chuva, todos podem sentir dolorosamente que Hong Kong não pode ser caótica e não deve se tornar caótica novamente. O desenvolvimento de Hong Kong não pode ser adiado novamente, e qualquer interferência deve ser eliminada”, disse Xi na oportunidade.

Esta não é a primeira tentativa de implantação da lei, mas agora o processo tende a ser bem sucedido. O anterior, em 2003, acabou abortado porque a população se ergueu contra a medida, prevendo o fim das liberdades individuais. Cerca de meio milhão de pessoas foram às ruas protestar, e o governo na ocasião engavetou o projeto. Agora, com a dissidência praticamente eliminada, não existe obstáculo à vista.

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