ONU é pressionada a romper com militares após chefe humanitário visitar Mianmar

Grupos civis dizem que ida de Martin Griffiths conferiu legitimidade aos generais que bloqueiam entrega de assistência no país

Organizações da sociedade civil atuantes em Mianmar não pouparam críticas à recente visita de Martin Griffiths, o responsável pela coordenação de assistência humanitária da ONU (Organização das Nações Unidas). Isso porque, segundo esses grupos, a viagem oficial não resultou em avanços significativos na provisão de ajuda humanitária e, ao mesmo tempo, conferiu legitimidade aos líderes do golpe, acusados de manipular a ajuda internacional em benefício próprio. As informações são da agência Al Jazeera.

Griffiths esteve em Naipidau na semana passada. Durante a missão, uma foto dele apertando as mãos do chefe das forças armadas, general Min Aung Hlaing, foi publicada na primeira página do jornal estatal Global New Light of Myanmar. Hlaing liderou o golpe militar em fevereiro de 2021, que resultou na tomada do poder pelas forças militares.

Durante sua estadia de três dias, Griffiths também inspecionou um campo de refugiados Rohingya e uma aldeia próxima a Sittwe, no estado de Rakhine, no noroeste. A visita do chefe humanitário da ONU aconteceu em meio a inundações e deslizamentos de terra provocados pelas chuvas de monções, que causaram pelo menos cinco óbitos na região de Bago, situada entre Naipidau e Yangon, a maior cidade do país.

Residentes de Yangon embarcam no trem Circular Railway para chegar aos arredores da cidade (Foto: Banco Asiático de Desenvolvimento/Lester Ledesma)

Em uma declaração conjunta divulgada pela organização Progressive Voice, 514 grupos da sociedade civil reconheceram o pedido de Griffiths por um “espaço seguro e contínuo para a entrega de ajuda” após sua visita. No entanto, ressaltaram que essa meta era inviável ao cooperar com os militares, acusados de bloquear a assistência às populações mais vulneráveis, especialmente em meio ao aumento das hostilidades geradas pelo golpe.

Os grupos da sociedade civil afirmaram: “A abordagem humanitária fundamentada em princípios exige que o Escritório da ONU para Assuntos Humanitários (Ocha) e outras agências humanitárias da ONU cortem seus vínculos com a junta criminosa ilegítima, responsável por manipular a ajuda e ser a raiz do sofrimento humano em Mianmar.”

No mês de julho, Volker Turk, o líder de direitos humanos da ONU, afirmou que os militares estavam ativamente bloqueando a assistência humanitária para milhões de civis necessitados. Segundo ele, a junta no poder estabeleceu obstáculos legais, financeiros e burocráticos com o propósito de negar acesso à ajuda, dificultando tanto o recebimento quanto o acesso a esse auxílio.

Após sua visita, Griffiths emitiu um comunicado enfatizando que um terço da população de Mianmar enfrenta necessidades devido a crises consecutivas. Ele fez um apelo aos militares para facilitarem o acesso à ajuda humanitária.

Reforçando essa mensagem, direto de Sittwe, Griffiths compartilhou um vídeo no Twitter, no qual lamenta a “grande tragédia” ocorrida e pede ajuda e paz que permitam a reconstrução das vidas das pessoas.

“Precisamos de um acesso melhor para poder ajudá-los diariamente, todas as semanas, com segurança”, enfatizou. Em outro post, disse que “tudo o que eles querem é um futuro”.

O Progressive Voice destacou que o conflito levou centenas de milhares de pessoas no noroeste, centro e sudeste de Mianmar a abandonarem suas casas, criando uma necessidade urgente de assistência.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar, inclusive vetando resoluções que venham a condenar a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral, como no caso de dezembro de 2022.

Inicialmente, o golpe de Estado foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu financeiramente com a queda. Mas o cenário mudou rapidamente. Para não se distanciar da junta, Beijing classificou a prisão de Suu Kyi e de outros funcionários do governo como uma “remodelação de gabinete”, palavras usadas pela agência de notícias estatal Xinhua.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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