ONU acusa junta militar de Mianmar de bloquear acesso humanitário ao país

Volker Turk afirma que a obstrução é "deliberada e direcionada" e pede que os líderes do regime sejam levados ao TPI

O chefe de direitos humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), Volker Turk, alertou na quinta-feira (6) que a junta militar de Mianmar, que articulou um golpe de Estado em 2021, está bloqueando o acesso ao país de ajuda humanitária vital, em meio à crescente violência das forças armadas contra a população e no confronto com grupos rebeldes. As informações são da agência Al Jazeera.

Durante sua fala no Conselho de Direitos Humanos em Genebra, Turk destacou a “negação sistemática” da assistência pelos militares. Milhões de civis que desesperadamente necessitam de ajuda estão sendo afetados por essa prática.

Para dificultar ainda mais a entrega e o acesso à ajuda humanitária, têm sido impostos obstáculos legais, financeiros e burocráticos. Essas barreiras impedem que as pessoas recebam a assistência necessária para sobreviver em meio à crise.

“Incentivo os Estados a considerarem o encaminhamento da situação em Mianmar ao Tribunal Penal Internacional (TPI). Também precisamos garantir a responsabilização por possíveis crimes cometidos por diferentes grupos armados”, disse.

Uma mãe birmanesa e sua filha de um ano fogem para a segurança, atravessando a fronteira com a Tailândia durante uma jornada de uma semana a pé em janeiro de 2022 (Foto: UNOCHA/Siegfried Modola)

O alto comissário expressou preocupação com a deterioração da situação no país do Sudeste Asiático, descrevendo-a como uma queda acentuada em direção a uma violência e desespero ainda mais profundos.

O país, anteriormente cheio de otimismo e esperança por um futuro pacífico e próspero, agora enfrenta uma realidade em que os civis são submetidos a “uma autoridade militar imprudente que emprega táticas de controle sistemático”, baseado em “medo e terror”, disse ele.

“Esta obstrução da ajuda que salva vidas é deliberada e direcionada, uma negação calculada de direitos e liberdades fundamentais para grandes faixas da população”, denunciou Turk.

O alto comissário detalhou que essa situação ocorre em um contexto no qual um terço da população está em extrema necessidade, precisando urgentemente de assistência para garantir acesso a moradia adequada, suprimentos alimentares, água e oportunidades de emprego.

Além disso, Turk destacou a crise econômica em curso, com os generais explorando os recursos naturais em ritmo acelerado, resultando em danos ambientais irreversíveis. Segundo ele, essa exploração irresponsável está contribuindo para a espiral descendente da economia do país.

Civis sob ataque

De acordo com Volker Turk, nos primeiros seis meses deste ano, seu escritório registrou um alarmante aumento de 33% nos ataques aéreos indiscriminados na comparação com o mesmo período de 2022. Ele ressaltou que as ofensivas direcionadas a alvos civis, incluindo aldeias, escolas, hospitais e locais de culto, estão em ascensão.

Além disso, Turk destacou um aumento significativo nos ataques de artilharia, totalizando mais de 563 até o momento neste ano, o que representa 80% dos ataques registrados em todo ano de 2022. A ONU também documentou repetidos incidentes de violência sexual, assassinatos em massa, execuções extrajudiciais, decapitações, desmembramentos e mutilações.

Números sombrios ilustram a gravidade da situação em Mianmar sob o governo militar. Citando “fontes confiáveis”, Turk disse que, desde que o regime assumiu o poder, estima-se que 3.747 pessoas tenham perdido a vida e cerca de 24 mil tenham sido detidas,

A intensificação da violência em Mianmar, incluindo a destruição deliberada de aldeias civis por meio de incêndios, resultou no deslocamento de 1,5 milhão de pessoas de suas casas. Além disso, a falta de segurança levou a uma situação em que 15,2 milhões de pessoas enfrentam uma necessidade urgente de assistência alimentar.

O alto comissário reiterou seu apelo urgente pelo fim imediato da “violência sem sentido” e pela libertação de mais de 19 mil presos políticos, entre eles a a líder democrática Aung San Suu Kyi e o presidente Win Mynt, removido do cargo em 2021.

Trabalhadores mortos

Turk destacou ainda que, desde o golpe, até 40 trabalhadores humanitários foram mortos e mais de 200 foram presos. Diante do aumento da violência, o chefe de direitos humanos apelou ao Conselho de Segurança das Nações Unidas para que encaminhasse os líderes do golpe ao TPI.

Ele ressaltou a importância de responsabilizar aqueles que cometem graves violações dos direitos humanos e outras transgressões do direito internacional, afirmando que qualquer solução política para essa crise prolongada deve incluir a responsabilidade.

Embora o Conselho de Segurança ainda não tenha respondido ao apelo, sobreviventes de atrocidades militares ocorridas desde o golpe e durante a repressão aos rohingya em 2017 apresentaram em janeiro uma queixa criminal ao Ministério Público Federal alemão. A Alemanha possui leis de jurisdição universal que permitem o julgamento de certos crimes graves, independentemente do local onde ocorreram.

Menos conversa, mais ação

Thomas Andrews, relator especial sobre Mianmar, falou em “menos retórica e mais ação” e instou os Estados-membros da ONU a agirem em apoio ao povo de Mianmar, exigindo que neguem à junta militar armas, dinheiro e legitimidade. Ele ressaltou que mais de 800 crianças foram mortas ou mutiladas desde o início do golpe, sendo a maioria vítimas de ataques indiscriminados das forças da junta.

Segundo Andrews, além dos falecidos, há 3.087 crianças detidas como prisioneiras políticas, enquanto 660 mil crianças estão deslocadas e 5,8 milhões de crianças necessitam de assistência humanitária. Ele enfatizou que essa situação é uma catástrofe sobreposta a outra e impacta de maneira profunda os mais vulneráveis, ou seja, as crianças de Mianmar.

Em seu relatório recente, o relator especial revelou que a junta importou mais de US$ 1 bilhão em armas e materiais correlatos desde o golpe, mesmo ciente de que tais armas poderiam ser utilizadas para matar milhares de pessoas inocentes e cometer prováveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar. Inicialmente, o golpe foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu bastante com a derrubada. Mas o cenário mudou desde então.

O governo chinês frequentemente se coloca ao lado da junta ao vetar resoluções que condenam a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral. A posição ficou evidente mais uma vez em dezembro de 2022, embora a China tenha optado por não vetar a resolução.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Entretanto, há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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