Rússia dribla sanções e usa a China para ter a tecnologia ocidental em suas armas

Estudo aponta que mais de 60% dos componentes críticos usados no arsenal russo são provenientes dos Estados Unidos

A Rússia tem sido bem-sucedida em sua estratégia para driblar as sanções ocidentais que visam a bloquear o acesso do país a itens de uso duplo, aqueles que podem ter funções tanto civis quanto militares. Assim, consegue obter tecnologias norte-americanas e europeias instaladas nas armas usadas na guerra da Ucrânia, como revelou nesta semana a revista Newsweek.

A reportagem tomou como base um estudo do Instituto KSE, think tank da Escola de Economia de Kiev. Ele aponta que mais de 60% dos componentes críticos usados em armas russas são provenientes dos EUA, e grande parte desse tipo de material que continua a alimentar as tropas de Moscou chega à Rússia passando pela China.

“O que vemos com esses dados é que as forças armadas da Rússia ainda dependem principalmente de componentes ocidentais”, disse Elina Ribakova, diretora do programa de assuntos internacionais da Escola de Economia de Kiev.

Míssil russo disparado durante treinamento (Foto: reprodução/Facebook)

Entre março e dezembro de 2022, período que corresponde aos primeiros meses de guerra, a Rússia importou 72% do valor total de seus componentes militares críticos da China. Trata-se de um aumento moderado de 22% em relação ao mesmo período do ano anterior, antes da guerra e das sanções.

Microchips e processadores representam a grande maioria dos itens de uso duplo em armas russas. O KSE identificou 1.057 desses artigos em 58 peças militares capturadas e analisadas, como mísseis de cruzeiro, veículos blindados, drones e unidades de artilharia. Isso acaba por excluir, por exemplo, sistemas de navegação e de comunicação, aos quais as forças ucranianas não têm acesso.

Entretanto, a maior parte desses itens não é produzida pelos chineses, e sim por empresas dos Estados Unidos e da Europa. Segundo relatório, a questão não se explica somente pela habilidade de Moscou em driblar as sanções através de rotas alternativas. Outro problema é que as sanções não são amplas o suficiente.

“É importante reconhecer que certos insumos potenciais para a produção militar ainda não estão cobertos por controles de exportação. Como resultado, as importações russas de alguns componentes críticos nem sempre representam violações de sanções e/ou evasão”, diz o documento.

Uma análise de dados de importação justifica esse argumento. Ela mostra que a compra de rolamentos pela Rússia aumentou 28% no primeiro trimestre deste ano, enquanto a importação de sistemas de navegação cresceu 27%. São artigos aparentemente inofensivos que têm função também militar.

Emily Kilcrease, pesquisadora sênior e diretora do programa de energia, economia e segurança do think tank Centro para uma Nova Segurança Americana (CNAS, na sigla em inglês), é mais dura em sua análise e cobra maior efetividade das nações ocidentais na aplicação das sanções.

“Estamos no ponto agora em que os controles de exportação devem começar a ter impacto. Mas a Rússia está se adaptando”, disse ela à Newsweek. “Demos o grande golpe que podíamos. Agora é realmente sobre a aplicação.”

Irã e China

O uso de drones iranianos, amplamente denunciado e punido pelas nações ocidentais, é uma forma de a Rússia driblar as sanções que deixam suas tropas sem armas. Não é, porém, a mais notável. O Irã já sofre com punições econômicas, portanto não tem nada a perder ao negociar com Moscou. E é praticamente impossível bloquear as rotas comerciais entre os dois países pelo Mar Cáspio.

O que exige melhor estratégia do Kremlin é a importação dos itens de uso duplo. Segundo especialistas, para driblar as sanções, as remessas são vendidas e revendidas diversas vezes, muitas vezes em negócios feitos por empresas legítimas, cujo destinatário final está na China ou em outro país onde uma companhia de fachada pode repassar o produto à Rússia.

“As estruturas de propriedade corporativa são muito ocultas, especialmente em países como Rússia e China”, disse Erika Trujillo, diretora da SEIA, empresa com sede na Alemanha que assessora multinacionais em conformidade comercial, controles de exportação e sanções. “É particularmente difícil fazer due diligence na China. Você verá uma empresa aparecer, fazer uma ou duas transações e fechar no dia seguinte.”

Beijing é mesmo a principal parceira indireta de Moscou. Entre outubro e dezembro de 2022, a Rússia importou 87% de seus microchips de vendedores chineses, mas apenas 40% deles foram sido fabricados na China. A Turquia é outro país citado no relatório como fonte importante de componentes críticos para as forças russas, embora em escala consideravelmente menor.

Culpa norte-americana?

No caso das empresas norte-americanas que armam Moscou, analistas afirmam que não é possível culpá-las, vez que não se tem informação sobre qualquer negociação consciente com os russos. Tanto que a venda direta de componentes críticos para a Rússia por empresas estrangeiras despencou durante a guerra, de 45% em 2021 para apenas 2% entre março e dezembro de 2022.

Em resposta à Newsweek, um funcionário do Departamento de Comércio dos EUA disse que o país, em estreita colaboração com a União Europeia (UE) e outros aliados, tem trabalhado para reprimir a evasão e apontou para uma longa lista de ações do governo Biden desde que a Rússia invadiu a Ucrânia.

Nesse sentido, Daniel Fried, ex-embaixador dos Estados Unidos na Polônia e principal negociador de sanções à Rússia durante o governo Obama, diz que “os controles de exportação sempre funcionam de forma imperfeita”. E avalia que eles não precisam “funcionar perfeitamente para serem eficazes”.

Dessa forma, na visão dele, o sistema atual de sanções estabelecido pelo Ocidente deve ser considerado bem-sucedido. “Um regime de sanções imperfeito e com vazamentos impõe um custo à economia russa e aos militares em particular”, afirma.

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