Em meio à guerra, russos também deixam seu país para fugir do autoritarismo

Com espaço aéreo fechado, cidadãos deixam à Rússia por terra e atribuem decisão sobretudo à repressão do governo Putin

Mais de dois milhões de pessoas foram forçadas a deixar a Ucrânia para fugir dos bombardeios russos desde o dia 24 de fevereiro, quando ocorreu a invasão que deu início à guerra. Embora não haja números oficias, também há um movimento de cidadãos que optaram por deixar a Rússia em meio ao conflito, embora as razões sejam bem distintas. As informações são da agência catari Al Jazeera.

São russos decepcionados com a eclosão da guerra, cansados da crescente repressão imposta pelo governo Putin a seus cidadãos e com medo dos efeitos das duras sanções econômicas anunciadas ou prometidas pelas nações ocidentais.

“Há mais razões do que uma. Embora, na realidade, só exista uma: a guerra criminosa na Ucrânia iniciada pela liderança russa”, disse em seu Facebook o crítico cinematográfico Anton Dolin, que fugiu para a Letônia.

Segundo Dolin, a principal razão dele para sair é a censura. “Não é possível viver num país, mesmo o seu próprio e amado, onde te calam a boca. Especialmente para uma pessoa cuja única ferramenta é a palavra. E eu simplesmente não conseguia respirar o ar de Moscou, onde as pessoas continuam a discutir planos, ver filmes, realizar discussões artísticas, ir a vernissages e estreias, enquanto na Ucrânia as pessoas estão matando e morrendo. Cada minuto de tal existência confirmou o óbvio: você é cúmplice”.

O jornalista Boris Grozovski é outro russo que foi embora e buscou abrigo na Geórgia, tendo usado o Facebook para justificar a decisão. “Não somos turistas, caros cidadãos da Geórgia. Nós somos refugiados. Pessoalmente, fui procurado pela polícia da Federação Russa por distribuir petições contra a guerra. Ela (a polícia) veio ver minha mãe de 83 anos, ligou, queria muito me ver. Se eu não tivesse me refugiado, estaria enfrentando a prisão”.

A censura e a repressão aos oposicionistas na Rússia são bem anteriores à guerra, mas aumentaram desde que o exército russo atacou a Ucrânia. Nesta semana passada, o Poder Legislativo aprovou um projeto de lei que criminaliza a distribuição do que o governo vier a considerar “notícias falsas” sobre operações militares russas.

De acordo com o texto legal, passa a ser proibido publicar conteúdo “contra o uso de tropas russas para proteger os interesses da Rússia” ou “para desacreditar tal uso”, o que prevê uma pena de até três anos de prisão. A mesma punição se aplica àqueles que venham a pedir sanções à Rússia.

Anton Dolin, crítico de cinema que fugiu da Rússia rumo à Letônia (Foto: reprodução/Facebook)

Ir às ruas contestar o conflito também rende prisão. Somente no final de semana passado, mais de quatro mil manifestantes foram detidos durante protestos que ocorreram em diversas partes da Rússia. Vídeos compartilhados nas redes sociais mostraram as mensagens levadas às ruas e endereçadas ao presidente Vladimir Putin: “Não à guerra!”, gritava a multidão. “Que vergonha!”, mostravam cartazes erguidos.

Após os protestos, o número de prisões registradas durante atos contrários à ofensiva russa no país vizinho subiu para mais de 10 mil, de acordo com a ONG OVD-Info.

“Sentimos dor, vergonha, horror, nojo, raiva e impotência. Não podemos influenciar o que Putin está fazendo sob o nome da Federação Russa, destruindo a Ucrânia e a Rússia”, escreveu Grozovski em seu perfil.

Dolin diz que também se sentiu ameaçado, mesmo após decidir ir embora. Ele conta que a porta do apartamento onde morava foi pintada com a letra “Z”, que tem sido usada como símbolo pró-guerra na Rússia. “O objetivo disso é claro: ‘Nós sabemos onde sua família mora, cuidado'”, diz ele, destacando a frustração por não conseguir se fazer ouvir. “A impotência de quem se opõe a esse sistema e a esse poder há 22 anos só reforça o sentimento de desespero”.

Economia sufocada

O maior desafio para os russos que decidem ir embora é o bloqueio aéreo de todos os voos que saem ou chegam à Rússia. Assim, a única alternativa é usar os poucos corredores disponíveis por terra. Quem tem um visto que permita ingressar na União Europeia (UE) opta pela Finlândia ou pelos países Bálticos, Lituânia, Letônia e Estônia. Quem não tem recorre a Geórgia, Armênia e Turquia, nações nas quais a comunidade russa não para de crescer.

A impossibilidade de deixar o país de avião, aliás, é um exemplo das limitações que os russos tendem a enfrentar em função da guerra e das consequentes sanções impostas pelo Ocidente. A economia do país, por exemplo, será duramente afetada pelo sufocamento imposto pelas nações ocidentais, com aumento da inflação e escassez de produtos e serviços.

Nesse sentido, o governo russo já anunciou que vai impor limite à compra de determinados produtos nos supermercados, sobretudos alimentos. Trata-se de uma reação ao surgimento de um mercado paralelo, com muitos cidadãos estocando bens de primeira necessidade para revender a preços maiores, prevendo uma futura escassez.

Muitas empresas ocidentais também anunciaram que deixarão de vender produtos e serviços na Rússia. São companhias que fazem parte da rotina de muitas pessoas e cuja ausência criará dificuldades rotineiras. Casos de Apple, Samsung, Microsoft, Netflix, Nissan, Visa e Mastercad, entre muitas outras.

“Ficou claro para mim que a horrível invasão mudará a Rússia para sempre”, disse Alexei Trubetskoy, russo que é dono de uma escola de inglês e trocou seu país pelo Sri Lanka, segundo o jornal britânico Guardian. “Espero voltar ao país que amo, mas não está completamente claro o que acontecerá a seguir. Meu futuro é tirado de mim, o país não será o mesmo”.

Para Andrei Kolesnikov, membro sênior do think tank Carnegie Endowment, esse êxodo tende a causar um grande prejuízo à Rússia, vez que a “força de trabalho de qualidade” é a mais tendente a fugir. “Esse êxodo significará a degradação da nação. O país não tem um grupo muito grande de pessoas talentosas. Sem eles, a Rússia não pode se desenvolver”, afirmou.

Por que isso importa?

A escalada de tensão entre Rússia e Ucrânia, que culminou com a efetiva invasão russa ao país vizinho no dia 24 de fevereiro, remete à anexação da Crimeia pelos russos, em 2014, e à guerra em Donbass, que começou naquele mesmo ano e se estende até hoje.

O conflito armado no leste da Ucrânia opõe o governo central às forças separatistas das autodeclaradas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, que formam a região de Donbass e foram oficialmente reconhecidas como territórios independentes por Moscou. Foi o suporte aos separatistas que Putin usou como argumento para justificar a invasão, classificada por ele como uma “operação militar especial”.

“Tomei a decisão de uma operação militar especial”, disse Putin pouco depois das 6h de Moscou (0h de Brasília) de 24 de fevereiro, de acordo com o site independente The Moscow Times. Cerca de 30 minutos depois, as primeira explosões foram ouvidas em Kiev, capital ucraniana, e logo em seguida em Mariupol, no leste do país, segundo a agência AFP.

Desde o início da ofensiva, as forças da Rússia caminham para tentar dominar Kiev, que tem sido alvo de constantes bombardeios. O governo da Ucrânia e as nações ocidentais acusam Moscou de atacar inclusive alvos civis, como hospitais e escolas, o que pode ser caracterizado como crime de guerra ou contra a humanidade.

Fora do campo de batalha, o cenário é desfavorável à Rússia, que tem sido alvo de todo tipo de sanções. Além das esperadas punições financeiras impostas pelas principais potencias globais, que já começaram a sufocar a economia russa, o país tem se tornado um pária global. Representantes russos têm sido proibidos de participar de grandes eventos em setores como esporte, cinema e música.

De acordo com o presidente dos EUA, Joe Biden, as punições tendem a aumentar o isolamento da Rússia no mundo. “Ele não tem ideia do que está por vir”, disse o líder norte-americano, referindo-se ao presidente russo Vladimir Putin. “Putin está agora mais isolado do mundo do que jamais esteve”.

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