Espiões? Criminosos de guerra? EUA e Europa fecham as portas para soldados russos desertores

Vistos com desconfiança, militares que conseguem escapar da Rússia não costumam ser aceitos em outros países

Histórias de desertores das Forças Armadas da Rússia têm sido registradas desde o início da guerra da Ucrânia, com direito a helicóptero roubado, ameaça de fuzilamento e até mudança de lado no conflito. Dispostos a escapar da carnificina do campo de batalhas, há muitos militares que cruzam as fronteiras em busca de abrigo em países estrangeiros. Porém, quase sempre encontram as portas fechadas.

A agência Associated Press (AP) entrevistou militares que esperavam obter refúgio em outros países, mas foram rejeitados. Para essas nações de destino, existe a dúvida de que esses homens possam ser espiões enviados pelo Kremlin, como tem sido frequente até no corpo diplomático russo, ou criminosos de guerra, responsáveis por alguns dos centenas de milhares de abusos registrados contra civis e militares ucranianos.

Na Rússia, a perspectiva para esses desertores é a pior possível. O site investigativo russo Mediazona conseguiu documentar até aqui 7,3 mil ações judiciais abertas por ausência sem autorização nas Forças Armadas desde setembro de 2022. A grande maioria desses processos envolve casos de deserção, que tiveram um aumento de seis vezes no ano passado.

E uma ação judicial nem é a pior perspectiva. Em novembro de 2022, o Ministério da Defesa do Reino Unido disse que ainda no campo de batalhas Moscou conta com um sistema para impedir deserções. Há soldados posicionados na retaguarda com ordem de fuzilar aqueles que tentem escapar e eventualmente se recusem a retornar à batalha.

Soldado das Tropas Aerotransportadas Russas, foto de maio de 2017 (Foto: Wikimedia Commons)

Apesar dos riscos, Grigory Sverdlin, que chefia um grupo humanitário da Geórgia em apoio a cidadãos russos, diz que o número de militares desertores é cada vez maior. Em 2023, apenas 3% dos russos que procuravam a entidade eram soldados que haviam deixado as Forças Armadas. Esta porcentagem aumentou para mais de um terço em janeiro de 2024.

Um destino preferencial dos desertores é a Alemanha, que segundo seu Ministério do Interior recebeu 7.633 pedidos de asilo no ano passado, contra 2.851 de 2022. Na França, houve um aumento de 50% entre um ano e outro, saltando para cerca de 3,4 mil requerentes de asilo russos em 2023.

Mesmo do outro lado do oceano, nos EUA, o cenário vem sendo notado. Em 2021, antes do início da guerra, os serviços de imigração norte-americanos registraram 13 mil russos nas fronteiras do país, e no ano passado esse número saltou para 57 mil.

Qualquer que seja o destino, apesar das previsões legais de concessão de asilo político, o normal é que os russos sejam rejeitados.

“Não existe nenhum mecanismo para os russos que não querem lutar, desertores, chegarem a um lugar seguro”, disse Evgeny, um dos militares entrevistados, pedindo que os governos ocidentais mudem a postura. “Afinal, é economicamente muito mais barato permitir a entrada de uma pessoa no seu país, um jovem saudável que possa trabalhar, do que fornecer armas à Ucrânia.”

A posição do soldado é compartilhada por ao menos uma autoridade: Andrius Kubilius, ex-primeiro-ministro da Lituânia, um dos países que faz mais forte oposição à Rússia no cenário global. Segundo ele, o Ocidente deveria de fato se interessar por esses militares. Até porque, como afirmou Evgeny, cada desertor aceito por um desses países é um combatente a menos no campo de batalhas.

“Não acreditar na democracia russa é um erro”, disse Kubilius. “Dizer que todos os russos são culpados é um erro.”

Desertor assassinado

Entre os russos que fugiram e receberam abrigo no exterior, um teve destino trágico. Maksim Kuzminov era um piloto de helicóptero russo que desertou para a Ucrânia no ano passado. Recebeu de Kiev uma bonificação milionária porque fugiu com a aeronave, que entregou ao governo ucraniano.

Porém, em fevereiro deste ano, o corpo de Kuzminov, que estava vivendo sob identidade falsa na Espanha, foi encontrado na cidade de Villajoyosa, a cerca de 450 quilômetros de Madrid. Sua identidade foi verificada por meio das impressões digitais, já que os documentos que ele portava eram falsificados.

De acordo com relatos da imprensa local, a polícia informou que o militar russo foi morto a tiros pelos agressores antes de ser atropelado por um carro. A inteligência espanhola afirma que será difícil vincular diretamente o assassinato a uma agência russa, mas acredita que Moscou tenha contratado matadores de fora da Espanha para executá-lo.

Soldados vira-casaca

Há ainda combatentes russos que passaram a integrar as Forças Armadas da Ucrânia. Eles formaram milícias rebeldes que enfrentam as tropas de Moscou, como o  Corpo de Voluntários Russos (RVC, da sigla em inglês).

O RVC migrou para o território russo a partir da Ucrânia, na região de Belgorod, perto da fronteira, em maio de 2023. Dele fazem parte cidadãos russos que demonstram apoio à nação invadida e resistem ao Kremlin. Outra facção semelhante é a Legião Russa Livre, formada por desertores das Forças Armadas russas e por voluntários russos e belarussos.

Essas duas organizações tornaram-se especialmente ativas nas últimas semanas, realizando ataques contra o território russo. Em março, projetando atacar a Rússia, chegaram a sugerir aos moradores que evacuassem cidades nas regiões de Belgorod e Kursk, perto da fronteira com a Ucrânia.

Na oportunidade, o presidente Vladimir Putin comparou os rebeldes ao Exército de Libertação Russo, que era formado por desertores que se uniram à Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. “Quanto a esses traidores, seus atuais mestres não lhes poupam piedade: eles são enviados diretamente para a batalha como bucha de canhão. Eles recebem o que merecem”, afirmou o chefe de Estado.

Tags: