Nos últimos dias, duas notícias certamente atraíram a atenção do Kremlin, vez que os protagonistas de ambas ameaçam expor um dos maiores segredos da guerra da Ucrânia: os crimes de guerra da Rússia. Enquanto um mercenário do Wagner Group se propõe a depor perante o Tribunal Penal Internacional (TPI), um integrante da milícia Rusich está detido na Finlândia acusado de abusos no campo de batalhas.
O caso com maior potencial de dano é o de Igor Salikov, que diz ser um ex-integrante da organização paramilitar privada Wagner Group. De acordo com a rede holandesa NPO 1, que o entrevistou, o russo de 60 anos está em Haia, sede do TPI, onde se desenvolvem as investigações das atrocidades praticadas pelos militares russos na Ucrânia. E disse que está disposto a testemunhar.
Salikov já vinha expondo segredos russos antes mesmo de chegar à Holanda, mas não para um tribunal. Ele confirmou que é uma das fontes anônimas de informação do ativista Vladimir Osechkin, fundador da ONG de direitos humanos Gulagu.net, que usa as revelações feitas por seus informantes para denunciar a violência estatal na Rússia.
Ex-coronel das Forças Armadas regulares da Rússia, Salikov diz que posteriormente passou a atuar como mercenário a serviço do Wagner, totalizando 25 anos como combatente. Nesse período, afirma que testemunhou diversas “atrocidades contra civis”, o que o fez “perder a fé na causa russa” a ponto de aceitar depor ao TPI.
Um dos crimes citados por ele é o de crianças ucranianas levadas para territórios russos durante a guerra, o que levou o TPI a emitir, em março de 2023, um mandado de prisão internacional contra o presidente Vladimir Putin e a comissária para os direitos da criança do gabinete dele, Maria Alekseyevna Lvova-Belova.
“Vi pessoas dos serviços secretos levarem um grande número de crianças sem pais através da fronteira para Belarus”, disse o ex-coronel na entrevista.
Civis mortos
No entanto, foi a violência contra civis que o levou a mudar de lado. Os episódios não teriam ocorrido somente na atual guerra da Ucrânia, iniciada com a invasão russa de 24 de fevereiro de 2022. São bem anteriores, desde a guerra separatista em Donbass, em 2014, onde também serviu.
Salikov diz que não somente viu as “atrocidades“, como ele mesmo classificou, serem cometidos. Teve acesso também a documentos que podem provar o envolvimento de figuras do alto escalão do governo.
“Eu sei de onde vieram as ordens”, declarou, citando o envolvimento do Ministério da Defesa e até do gabinete de Putin. Entretanto, admite que é difícil fornecer provas materiais, vez que não carrega consigo nenhum documento. Assim, o tamanho da colaboração que pode oferecer depende dos planos do TPI.
O militar explicou ainda que decidiu testemunhar após receber ordens para executar civis. Como se negou a obedecer, seria levado à corte marcial. Antes de ser julgado, no entanto, conseguiu fugir da Rússia com a família e agora pede que seus familiares recebam proteção em troca do testemunho.
Julgamento em Helsinque
Outro caso delicado para o Kremlin é o de Voislav Torden, que está preso na Finlândia suspeito de cometer crimes de guerra no leste da Ucrânia durante a primeira invasão russa, em 2014. De acordo com a rede local YLE, as acusações contra ele serão apresentadas até maio do ano que vem.
Torden, que anteriormente usava o nome Jan Petrovski, é fundador da milícia neonazista Rusich, que assim como o Wagner age conforme os interesses de Moscou, embora não mantenha uma relação formal comprovada com o governo russo.
Preso pelas autoridades finlandesas em julho, no aeroporto de Helsinque, ele teve um pedido de extradição para a Ucrânia negado. A Finlândia alegou que em uma prisão ucraniana dificilmente receberia tratamento compatível com os direitos humanos.
De todo modo, o combatente será julgado no país escandinavo com base no princípio da jurisdição universal, que capacita a Justiça local para julgar casos internacionais que envolvam crimes como genocídio, tortura e crimes contra a humanidade, mesmo se cometidos no exterior.
E a perspectiva para ele não é boa. A Finlândia compartilha com a Rússia uma fronteira de cerca de 1,34 mil quilômetros e é um dos países que mais temem uma invasão futura. A ponto de ter deixado de lado sua neutralidade histórica para aderir à Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Diante de cenário, Torden pode ficar sem outra opção que não revelar eventuais abusos cometidos pelo Rusich a mando do Kremlin, recebendo em troca uma pena menos severa.
Os crimes de guerra
O governo da Ucrânia criou um site para registrar as vítimas civis e os crimes de guerra cometidos pelas forças da Rússia somente no conflito iniciado em 2022. No canal, Kiev relata que já morreram mais de dez mil civis, com dados atualizados até a semana passada.
No mesmo site, o governo ucraniano alega que, considerando essas informações, foram documentados 116.411 crimes de guerra cometidos pelas tropas de Moscou. A ONU (Organização das Nações Unidas) costuma endossar as estatística divulgadas pela Ucrânia, com seus boletins esporádicos apresentando dados semelhantes.