Ligações interceptadas revelam o crescente desejo de soldados russos de abandonar a guerra

Gravações sugerem que russos estão perdendo a vontade de lutar

Enquanto a guerra na Ucrânia se aproxima do seu segundo inverno, ligações telefônicas interceptadas nas linhas de frente, obtidas pela agência Associated Press (AP), revelam um aumento no desejo de soldados russos em deixar os campos de batalha em Kharkiv, Luhansk e Donetsk e voltar para casa.

Esses apelos revelam a atmosfera desalentadora do conflito, indo de soldados treinados a indivíduos de diferentes origens, obrigados a servir em condições desafiadoras. “Não há heroísmo aqui”, contou de Kharkiv um soldado a seu irmão por meio de um telefonema. “Você simplesmente morre como uma minhoca.”

Apesar disso, a possibilidade de uma nova onda de mobilização permanece enquanto Vladimir Putin busca engrossar suas fileiras no front. O recrutamento anual de outono na Rússia, iniciado em outubro, atraiu cerca de 130 mil jovens. Apesar da declaração de Moscou de que esses recrutas não serão enviados para a Ucrânia, ao completarem um ano de serviço, eles se tornam automaticamente reservistas, tornando-se principais candidatos a pegarem em armas.

Membros das forças armadas da Rússia (Foto: reprodução/Facebook)

As vozes nas chamadas interceptadas, coletadas em conversas registradas ao longo de 2023, são de homens que não conseguiram fugir da mobilização, alguns por falta de recursos ou opções. Alguns acreditavam no dever patriótico, com ocupações variadas, como trabalhadores em frigoríficos, escritórios de advocacia e carpinteiros enfrentando desafios financeiros, conforme registros.

A AP confirmou as identidades falando com familiares e soldados, incluindo aqueles que estão em meio ao front. A reportagem também realizou pesquisas em fontes de código aberto relacionadas aos números de telefone dos soldados.

Vidas sem valor

Os apelos acompanham um aumento nos processos judiciais na Rússia contra soldados que se recusam a lutar. Alguns deles descrevem a situação na Ucrânia como “genocídio“.

Para se ter ideia, nos primeiros seis meses de 2023, a Justiça da Rússia emitiu mais de duas mil sentenças condenatórias contra cidadãos que se recusaram a servir às forças armadas na guerra da Ucrânia. A média é de mais de cem condenações por semana, de acordo com levantamento do site independente Mediazona.

“Este é apenas um enorme campo de testes, onde o mundo inteiro está testando suas armas”, disse um soldado em gravação. “Isso é tudo.”

No entanto, há também vozes de soldados comprometidos com a luta, como Artyom, que ficou estacionado durante oito meses sem interrupção no leste do país invadido. “Enquanto formos necessários aqui, cumpriremos a nossa tarefa”.

Artyom, que deixou dívidas na Rússia, enfrenta dificuldades na Ucrânia devido ao frio intenso, impossibilitando até mesmo a lavagem da roupa íntima. Em janeiro, ele descreveu a situação como “desafiadora e sombria” para sua esposa.

“Já se passaram quatro meses”, disse ele à esposa em janeiro. “Todo mundo está louco, sombrio como o inferno.”

Para Artyom, a guerra carece de sentido. Na ligação, ele questionava as motivações de Putin na Crimeia, o propósito de tomar Kharkiv e Kiev, e a falta de sinceridade sobre a situação no front. O que ele desejava ouvir era simples: que poderia retornar para casa.

Outro relato sombrio foi de um soldado chamado Andrei. Ele compartilhou um relato tocante após quatro meses na Ucrânia, sentindo que sua vida não tinha valor para Moscou. Convocado para o serviço militar no extremo leste da Rússia, acabou na província de Donetsk, no leste da Ucrânia, enfrentando pesadas perdas na unidade.

“Os mobilizados não são considerados humanos”, disse ele à mãe. “Ninguém dá a mínima para nós. Eles acham que por 200 mil rublos (R$ 10,7 mil) deveríamos morrer aqui.”

Insatisfação

A guerra na Ucrânia, que a Rússia classifica oficialmente como uma “operação militar especial”, está longe de ser unanimidade entre os cidadãos russos. A insatisfação com o conflito atinge inclusive as forças de segurança, com um movimento crescente de integrantes das forças armadas e da Guarda Nacional usando as vias legais para se recusar a combater.

O processo para que um russo não seja enviado ao campo de batalha é relativamente simples, vez que Moscou não considera o conflito uma guerra. Pela lei, basta alegar “convicções antiguerra” para ficar fora da “operação militar especial”. Não deixa de ser irônico, vez que o governo tem se desdobrado para combater protestos antiguerra e até criou uma lei para punir aqueles que contestam a invasão.

Embora juridicamente simples, a recusa tem um preço. Invariavelmente, aqueles que pedem para não lutar são expulsos do exército ou da Guarda Nacional, esta última uma unidade armada habitualmente encarregada de manter a ordem pública em território russo.

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