Longe dos holofotes do Ocidente, espionagem russa age nas sombras no Sul Global

Brasil, Colômbia e República Centro-Africana foram alvo da inteligência de Moscou, que atua para desestabilizar a ordem pública e disseminar influência

Por André Amaral

Enquanto os olhos do mundo mantêm o foco nas tensões geopolíticas que envolvem grandes potências, uma rede de espionagem silenciosa e sofisticada opera nas sombras em nações do Sul Global. Agentes russos têm encontrado terreno fértil para suas atividades secretas fora do eixo EUA-Europa, que garantem verdadeiros trunfos a Vladimir Putin contra seus rivais ocidentais.

De 2023 para cá, o Brasil tem sido palco de uma trama de espionagem internacional coordenada pelo Kremlin. Diante de dois casos de grande repercussão, investigadores e membros da comunidade de inteligência têm se questionado: como os serviços de inteligência russos conseguiram transformar o território brasileiro em uma “incubadora” de espiões?

A resposta reside na capacidade dos espiões russos em criar uma fachada convincente. Eles operam sob identidades brasileiras falsas e levam vidas paralelas no país. Essa estratégia permite que esses agentes circulem por espaços de poder não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, sem despertar suspeitas nos serviços de inteligência da Europa e dos Estados Unidos.

O presidente russo, Vladimir Putin, assiste a exercícios militares com o ministro da Defesa, Sergei Shoigu: Moscou está de olho no Sul Global (Foto: WikiCommons)

Os espiões russos, dotados de grande habilidade social, assumem identidades brasileiras como quem veste uma camisa de clube de futebol de bairro. Eles não são apenas “Victor” ou “José”; são “Victor Muller Ferreira” e “José Assis Giammaria”, nomes tão comuns que se perdem na cacofonia das ruas movimentadas, e têm tanto documentos quanto os hábitos de um brasileiro, o que inclui aulas de samba e relacionamentos amorosos.

O Brasil não é apenas um destino; é uma plataforma de lançamento. Esses espiões usam suas identidades falsas para obter acesso a informações sensíveis em todo o mundo.

Recentemente, um homem que se identificava como Victor Muller Ferreira, que portava documentos pessoais que apontavam seu nascimento em 11 de setembro de 1985 em Niterói, no Rio de Janeiro, foi detido em Amsterdã. Ele havia se infiltrado no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, como parte de sua missão.

O indivíduo em questão era na verdade Sergey Vladimirovich Cherkasov, desmascarado como um espião russo. O Kremlin mantém silêncio, mas as evidências apontam para uma estratégia bem-sucedida de espionagem tropical.

Com formação de excelência no currículo, que incluía a prestigiada Universidade Johns Hopkins, nos EUA, Cherkasov era parte de um plano da GRU, a inteligência militar russa, de longo prazo e de vários anos que custou [à Rússia] muito tempo, energia e dinheiro.

O serviço de inteligência holandês acusou o homem de tentar conseguir um estágio na TPI usando uma história falsa para esconder seus vínculos com a GRU. O episódio revelou um esquema que remonta à Guerra Fria, quando o Kremlin usava espiões em várias partes do mundo.

Construção de personagem

Os chamados “ilegais” russos imergem na cultura local. Com alto treinamento, eles aprendem idiomas, costumes e tradições, tornando-se parte integrante da comunidade. Essa integração facilita o acesso a informações e a identificação de alvos potenciais.

Os “ilegais” levam uma vida mais singular do que a ficção. Enquanto agem como pessoas absolutamente normais, secretamente trabalham para os serviços de inteligência russos. E conseguem acessar informações que seriam inacessíveis a cidadãos russos.

Basicamente, esses espiões conseguem obter identidades em países estrangeiros por meio de uma meticulosa construção de histórias de vida, redes sociais e disfarces elaborados. Tal habilidade de camuflagem é essencial para o sucesso de suas missões.

Desordem e campanha anti-EUA

A espionagem russa também está se estendendo para países da América Latina, com a Colômbia expulsando três cidadãos russos desde 2020. O caso mais recente envolveu a prisão de Sergeí Vagin, em março de 2022, por recrutar colombianos para causar agitações no país.

Vagin e seis colombianos são acusados de formar uma rede criminosa que movimentava milhões de dólares desde 2019 para financiar ações contra a força pública, que compreende instituições responsáveis pela segurança e defesa do país, incluindo a Polícia Nacional, o Exército Nacional, a Marinha Nacional e a Força Aérea Colombiana. Assim, organizavam protestos, conforme relatou a revista colombiana Semana.

Conhecido como “Servac”, Vagin transferia dinheiro da Rússia para desestabilizar diferentes cidades colombianas, de acordo com a Rádio Caracol.

Ele e sua rede recrutavam colombianos e venezuelanos para abrir contas e movimentar grandes somas de dinheiro, além de se infiltrar nos protestos, conforme o jornal colombiano El Tiempo. Documentos da Procuradoria-Geral também sugerem uma ligação entre Vagin e o Exército de Libertação Nacional (ELN), uma milícia de ideologia comunista que atua na Colômbia.

Em entrevista ao portal Diálogo Américas, Milton Deiró Neto, consultor sênior do Centro de Defesa, Segurança e Espaço do Senai Cimatec e doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), disse que a Rússia também conduz espionagem eletrônica na América Latina, buscando influenciar através de redes sociais, bots e desinformação, principalmente promovendo um sentimento anti-EUA entre os latino-americanos.

Neto observa que a Rússia está estruturando uma rede de espionagem na América Latina para conhecer e influenciar atores-chave, visando minar parcerias e alianças estratégicas entre os países latino-americanos e os Estados Unidos. Ele destaca que essa estratégia é uma herança da Guerra Fria e está sendo revitalizada sob Putin.

Inteligência russa na África

Um ex-enviado do Kremlin para a União Europeia (UE), associado à inteligência russa por diplomatas europeus, foi enviado para supervisionar a coordenação entre o grupo mercenário Wagner Group e as forças de segurança na República Centro-Africana (RCA), revelou uma investigação da rede Radio Free Europe em dezembro.

Denis Pavlov, um diplomata russo, deixou seu posto em Bruxelas no início de 2023 e agora está em Bangui, capital da RCA. Sua chegada ocorre em um momento em que Moscou busca manter sua influência na África após a morte do chefe da organização paramilitar, Evgeny Prigozhin, em agosto.

Apesar de afirmar ser um diplomata da embaixada russa, fontes revelam que Pavlov é, na verdade, um oficial do Serviço de Inteligência Estrangeira da Federação Russa (SVR). Sua missão é assumir o controle da colaboração em segurança com a direção-geral da Polícia Nacional da República Centro-Africana.

Policiais da República Centro-Africana em Bangui (Foto: WikiCommons)

O histórico de Pavlov continua envolto em mistério, com poucas informações disponíveis online e detalhes não confirmados sobre sua patente de coronel no SVR. Suas atribuições anteriores incluem trabalho diplomático na Europa, proficiência em francês e experiência como conselheiro político em várias missões internacionais. No entanto, sua discrição em Bruxelas não o protegeu do escrutínio dos círculos de inteligência.

Enquanto Moscou intensifica o envio de mercenários para a África, a missão de Pavlov na República Centro-Africana reflete um momento crucial no cenário de segurança em mudança, onde operações secretas de inteligência se entrelaçam com influências paramilitares. O pagamento de quase meio bilhão de euros ao Wagner pelo governo da RCA destaca a importância do envolvimento russo nos assuntos da África Central, agora sob o controle discreto de Pavlov.

Agentes não russos

As agências de espionagem russas estão cada vez mais se afastando das operações tradicionais e optando por métodos remotos, muitas vezes recorrendo a agentes não russos para conduzir suas atividades, que incluem desde membros do crime organizados até cidadãos estrangeiros.

Ouvido pela rede Voice of America (VOA), Oleksandr V. Danylyuk, membro associado do Royal United Services Institute (Rusi), no Reino Unido, ressaltou a importância fundamental de negar o respaldo governamental para essas operações especiais.

“A capacidade de negar o patrocínio do governo é crucial para as operações especiais”, disse Danylyuk. Ele observou que os russos continuam investindo somas consideráveis em operações de inteligência na Europa, com foco no desenvolvimento de capacidades destinadas a interferir em processos eleitorais, radicalizar diversos grupos sociais, étnicos e religiosos, incluindo minorias, além de investir bilhões em representantes políticos com potencial para ascender ao poder.

Brasil é “esconderijo”

Documentos brasileiros estão ao alcance de criminosos, basta saber como obtê-los. Os espiões a serviço do Kremlin sabem como agir, facilitando a encenação do teatro da falsa nacionalidade.

Segundo o professor de relações internacionais da ESPM Gunther Rudzit, doutor em Ciência Política pela USP e um dos maiores acadêmicos do país na área de segurança internacional, para os serviços de inteligência ocidentais, não é novidade a utilização de passaportes brasileiros, uma vez que o Brasil tem uma população multiétnica, fazendo com que pessoas com os mais diferentes perfis possam se passar por locais.

“O país também é conhecido como local para ‘descanso’ ou esconderijo para agentes já descobertos ou que estejam sendo procurados, uma vez que, pelas mesmas razões, a pessoa pode ‘desaparecer’ no meio da multidão em um dos grandes centros, em especial São Paulo”, explicou Rudzit.

Um delegado que atua no Estado de São Paulo e pediu anonimato disse À Referência que o caso de Cherkasov parece se enquadrar em um padrão de falsificação de documentos comum no Brasil. Diz ele que a forma mais frequente de fraude de identidade pressupõe o uso de dados de um bebê que tenha morrido pouco após o nascimento e cuja certidão de óbito não tenha sido averbada. Assim, a morte não entra nos sistemas do governo.

Um documento cuja obtenção não deve ter dado muita dor de cabeça ao russo é a CNH. O delegado ouvido pela reportagem destaca a corrupção do Detran (Departamento de Trânsito) como um facilitador, bem como os casos de desvio ou roubo do papel de segurança usado para confecção do documento.

Tags: