Autoridades estatais estão cada vez mais ao alcance das teias de inteligência de Rússia e China

Assédio a integrantes de governos rivais mostra o quanto Moscou e Beijing estão dispostos a se arriscar para conseguir informações valiosas

Por André Amaral

Nos corredores da política internacional, peças de xadrez invisíveis estão em movimento. Nos últimos anos, têm sido recorrentes os casos de autoridades estatais ocidentais que cooperam secretamente com a inteligência russa, que dá mostras de estar num ritmo de trabalho incansável com seus espiões. A situação expõe até onde Vladimir Putin consegue estender seus tentáculos para obter informações potencialmente valiosas e os riscos que corre para tê-las.

Essas alegações lançaram luz principalmente sobre as complexidades e controvérsias das relações entre Moscou e países da Europa, levantando preocupações sobre segurança nacional, interesses geopolíticos e até mesmo integridade democrática. Os países bálticos são os mais afetados.

Um caso notório, na Estônia, é o de Hermann Simm, um ex-chefe do Departamento de Segurança do Ministério da Defesa condenado por espionagem a favor da Rússia. Ele foi o primeiro agente identificado, julgado e condenado por traição desde que a Estônia recuperou sua independência em 1991. Simm, que era encarregado da proteção das comunicações confidenciais entre Talin e seus aliados, foi detido em setembro de 2008, sob suspeita de coletar e transmitir ilegalmente segredos de Estado para um governo estrangeiro não identificado. Em 2009, foi sentenciado a 12 anos de prisão.

Arte urbana compara Putin ao Grande Irmão, figura autoritária do livro ‘1984’, de George Orwell (Foto: Sergei F/Flickr)

O contato de Simm era o agente russo Sergei Yakovlev, também conhecido como Antonio de Jesus Amurett Graf, procurado em relação ao caso envolvendo Simm. Yakovlev trabalhou para a Diretoria S do SVR (Serviço de Inteligência Estrangeira russa, da sigla em inglês), responsável por operações com “ilegais”, espiões que assumem identidades genuínas em países estrangeiros. Com habilidades em português quase nativas, Yakovlev aparentemente obteve ilegalmente a cidadania portuguesa, conseguindo um passaporte em nome de Antonio de Jesus Amurett Graf. Viajando como consultor de negócios, ele se encontrou com Simm a cada três meses ou mais, em pelo menos 15 países da União Europeia (UE) e outros locais.

Outro estoniano cooptado foi Raivo Susi, um empresário do setor de aviação condenado por espionagem na Rússia. Ele foi detido em fevereiro de 2016 no aeroporto Sheremetyevo, em Moscou, enquanto viajava para um país da Ásia Central. As acusações contra Susi remontam às suas atividades entre 2004 e 2007. Ele é co-proprietário de várias empresas na Estônia que se dedicam à montagem, manutenção, reparo e venda de aeronaves de treinamento a jato, com clientes que incluem milionários e membros de clubes de aviação da Rússia, Reino Unido, EUA e Europa Ocidental.

Uma de suas empresas alugou duas aeronaves de treinamento a jato L-39 para as forças de defesa da Estônia sob um acordo de quatro anos a partir de 2015. Em dezembro de 2017, um tribunal russo condenou Susi por espionagem, sentenciando-o a 12 anos em uma prisão de alta segurança. O caso foi classificado como “ultrassecreto”, e o julgamento ocorreu a portas fechadas.

A Estônia, que tem sido uma sólida defensora da Ucrânia em meio ao conflito, há anos mantém relações turbulentas com a Rússia. Em outubro de 2022, o parlamento estoniano declarou a Federação Russa um “regime terrorista”.

Espionagem metódica

Segundo a rede Euronews, as atividades de espionagem russa em toda a Europa e globalmente são categorizadas em quatro principais modalidades:

Primeiro, a presença de espiões russos em embaixadas estrangeiras sob o disfarce de diplomatas; segundo, a atração de funcionários ou políticos por parte da Rússia, remunerados para fornecer informações sensíveis; terceiro, agentes secretos russos, chamados de “ilegais”, que levam vidas aparentemente comuns, muitas vezes se passando por cidadãos de outros países e mantendo sua cobertura por longos períodos, como Sergey Vladimirovich Cherkasov, suspeito de ser um espião russo ativo no Brasil, e Tihomir Ivanov Ivanchev, sexta pessoa oriunda da Bulgária detida desde o ano passado no Reino Unido sob suspeita de servir à inteligência de Moscou; e quarto, células de espionagem adormecidas, exemplificadas pelos búlgaros recentemente expostos em Londres, cuja missão é observar e construir contatos, potencialmente visando indivíduos suscetíveis à espionagem.

Em relação às agências encarregadas dessas operações, historicamente o GRU (Departamento Central de Inteligência russa) era responsável pelo serviço de inteligência externa, enquanto o FSB (Serviço de Segurança Federal da Rússia) concentrava-se na espionagem interna. Contudo, os papéis dessas agências têm se alterado, conforme explicado por Ryhor Nizhnikau, especialista em Rússia do Instituto Finlandês de Assuntos Internacionais (FIIA). Ele destaca que o sistema russo requer uma sobreposição e até mesmo uma duplicação de competências entre o GRU e o FSB, para que ambas as agências possam se monitorar e controlar mutuamente.

Essas instituições frequentemente compartilham missões similares, resultando em uma competição por destaque e influência.

Letônia, alvo preferencial

Como a Estônia, a Letônia é outro país báltico que sofre bastante com as ações da inteligência russa. Dois casos recentes evidenciam o tamanho do problema. Em janeiro deste ano, o site investigativo The Insider revelou que Tatjana Zdanoka, membro do Parlamento Europeu representando Riga, colaborava com a inteligência russa desde 2005.

E-mails trocados entre a eurodeputada e agentes russos vazaram, mostrando detalhes das atividades da legisladora europeia no “incentivo ao sentimento pró-Kremlin” no Báltico. No período em que serviu a Moscou, ela participou de reuniões com oficiais de inteligência do FSB e solicitou financiamento de fontes russas para suas atividades políticas e eventos em homenagem ao Exército Soviético.

Tatjana é de origem russa e obteve a cidadania letã em 1996, construindo toda a carreira política com uma plataforma pró-Moscou. Ainda assim, o caso dela surpreende, considerando a importante posição que ocupava na UE, que acatou as denúncias e abriu uma investigação.

Outra importante figura política letã que caiu nas garras do Kremlin foi o ex-ministro do Interior do país Janis Adamsons, condenado em novembro de 2023 a oito anos de prisão por espionagem. Como Tatjana, ele também foi acusado de manter contato frequente com o FSB, a quem teria fornecido “informações secretas e não confidenciais”, segundo o juiz que cuidou do caso.

Veterano da política letã, Adamsons foi ministro entre 1994 e 1995 e depois se elegeu parlamentar, tendo exercido seis mandatos até ser preso em 2021. Ele, como a eurodeputada, mantém uma relação histórica com Moscou, servindo à Marinha soviética antes da fragmentação do Estado em 1991. Um promotor que cuidou do caso disse que a colaboração não ocorreu por dinheiro, e sim por “convicções ideológicas”.

Um traidor na política australiana

No final de fevereiro, o governo australiano enfrentou críticas e forte pressão para revelar a identidade de um ex-político acusado pelo principal oficial de inteligência de Camberra de ter agido como “traidor”, vendendo os interesses do país a uma potência estrangeira, segundo informações da CBS News.

Em uma declaração pública sem precedentes, o diretor-geral de segurança da Austrália, Mike Burgess, revelou que uma equipe de espionagem de um país não especificado havia recrutado e influenciado um ex-político australiano.

“Este político vendeu seu país, seu partido e seus ex-colegas para promover os interesses do regime estrangeiro”, declarou Burgess em um discurso.

A Austrália, como membro da aliança Five Eyes, uma rede de compartilhamento de inteligência, juntamente com os EUAReino UnidoCanadáAustrália e Nova Zelândia, é um alvo potencial para agentes de países como China e Rússia.

Burgess, à frente da Organização Australiana de Inteligência de Segurança (ASIO, da sigla em inglês), informou que o ex-político não identificado havia sido recrutado “há vários anos”.

O suspeito considerou envolver um membro da família do primeiro-ministro em atividades de espionagem, embora esse plano não tenha avançado, afirmou Burgess.

O ex-político em questão, no entanto, organizou uma conferência no exterior na qual os espiões, disfarçados como burocratas, visavam os participantes para recrutamento, conseguindo, eventualmente, obter informações de segurança e defesa de um acadêmico, explicou Burgess.

Essas declarações desencadearam especulações na mídia e pedidos para que a identidade do ex-político fosse revelada.

“O problema é que, se ele não fornecer o nome, haverá uma nuvem de suspeitas sobre todos os outros”, destacou Peter Dutton, líder conservador da oposição, em uma entrevista à estação de rádio 2GB de Sydney. “Se alguém está revelando esses detalhes, como fez o Sr. Burgess, acho que é sua responsabilidade oferecer mais critérios ou uma dica mais clara sobre quem poderia ser essa pessoa.”

Espiões chineses no parlamento britânico

A China acompanha a Rússia e mostra igual competência para se infiltrar nos círculos do poder ocidentais. Em setembro de 2023, um pesquisador do Parlamento do Reino Unido foi preso sob a Lei de Segredos Oficiais devido a suspeitas de espionagem em favor de Beijing. O indivíduo, cuja identidade não foi revelada pelas autoridades britânicas, mas que aparenta ter cerca de 20 anos, negou qualquer envolvimento em espionagem em um comunicado divulgado por seus advogados.

Dias depois, outro homem, aparentando 30, foi detido. Foi relatado que este último, preso em sua casa em Edimburgo, tinha acesso a vários deputados conservadores e morou na China por um período.

O primeiro-ministro Rishi Sunak expressou “preocupações muito fortes” sobre a possível “interferência” da China na democracia britânica ao conversar com o primeiro-ministro Li Qiang durante a cúpula do G20 na Índia, já que o presidente chinês, Xi Jinping, não esteve presente devido a tensões bilaterais com Nova Délhi.

De acordo com o jornal britânico Sunday Times, o pesquisador tinha acesso ao ministro da segurança, Tom Tugendhat, e à presidente do comitê de relações exteriores, Alicia Kearns, entre outros. Múltiplas fontes governamentais se recusaram a comentar sobre questões de segurança.

Um porta-voz da embaixada chinesa em Londres classificou os relatos como “calúnias maliciosas”. Em um comunicado, ele afirmou: “A alegação de que a China está sendo suspeita de ‘roubar a inteligência britânica’ é completamente falsa e não passa de uma difamação maliciosa.”

As prisões reacenderam o debate sobre a relação entre Londres e Beijing, que tem sido marcada por crescentes preocupações com espionagem e interferência no Parlamento. Isso levanta questões sobre se deveriam ter sido adotadas mais medidas para mitigar esses riscos.

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