Na Rússia, mulheres formam uma nova e barulhenta frente contra a guerra de Putin

Mães e esposas de combatentes se unem para contestar o conflito e pedir que seus filhos e maridos voltem para casa

A guerra da Rússia contra a Ucrânia, desencadeada pela invasão das tropas do Kremlin no dia 24 de fevereiro de 2022, tem um novo e barulhento grupo de oposição: as mulheres russas. São essencialmente mães e esposas de combatentes que desafiam o presidente Vladimir Putin ao pedirem que seus homens voltem para casa, conforme o conflito se arrasta com números de baixas bem superiores a qualquer projeção inicial e sem um encerramento em vista.

O movimento se estabeleceu ainda no início da guerra e criou um problema significativo para Moscou. A ponto de o governo russo ter forçado o fechamento, em julho deste ano, da mais importante entidade representativa dessas mulheres, o Conselho de Mães e Esposas, uma organização informal que defendia os interesses de cidadãos recrutados.

Olga Tsukanova, líder e fundadora do Conselho, foi inclusive classificada como agente estrangeiro pelo governo russo. Quanto ao grupo, ela alegou que a justificativa oficial para o encerramento foi a republicação de material originalmente produzido por um veículo igualmente rotulado como agente estrangeiro.

A repressão inicial do Kremlin, entretanto, não silenciou as mulheres. Segundo a agência Reuters, a insatisfação tem crescido. Embora muitas russas tenham no início se colocado a favor da guerra, que Moscou classifica oficialmente como “operação militar especial”, hoje começam a se virar contra o regime devido à falta de informações sobre os combatentes e ao longo período de serviço militar.

Soldados do exército da Rússia (Foto: reprodução/Facebook)

“Queremos que os nossos homens sejam desmobilizados para que possam voltar para casa, porque pensamos que durante mais de um ano eles fizeram tudo o que podiam. Ou até mais”, disse Maria Andreeva, cujo marido luta na Ucrânia há mais de um ano. “Para mim, não é apenas uma luta para garantir que a minha filha tenha um pai, mas também uma luta pelo meu casamento.”

Um outro grupo criado mais recentemente, formado por mães e esposas de combatentes, divulgou nesta semana um áudio no aplicativo Telegram. Nele, também pede que os homens sejam liberados para deixar a Ucrânia, segundo relatou o jornal The Moscow Times.

“Somos contra a escravidão legalizada”, diz a mensagem divulgada pelo Put’ Domoi (A Caminho de Casa, em tradução livre), segundo quem as famílias vêm sendo ignoradas pelo governo conforme o serviço militar se estende “indefinidamente”.

“Estávamos confiantes de que a promessa do ministro da Defesa, Sergei Shoigu, de substituir os soldados mobilizados por um exército contratado até ao final de 2023 seria cumprida”, disse o grupo. “Mas estávamos enganadas.”

Quantos já morreram?

A falta de informações por parte do governo é outra reclamação constante e pode ser observada nos números de soldados enviados à guerra e de baixas registradas. Simplesmente não há estatísticas oficiais do Kremlin a respeito, e a missão de projetar quantos russos foram ao campo de batalhas, quantos se feriram ou quantos morreram fica a cargo de governos estrangeiros e de entidades independentes.

Nesse sentido, os dados mais confiáveis provenientes da Rússia remetem aos 300 mil cidadãos que foram mobilizados a partir de setembro de 2022 por ordem de Putin. Embora o próprio presidente tenha dito que o processo foi encerrado, há indícios de que muitos indivíduos continuam sendo obrigados a lutar. Por exemplo, são comuns os casos de detentores de passaporte russo impedidos de deixar o país sob o argumento da guerra.

Em janeiro deste ano, o porta-voz presidencial Dmitry Peskov reforçou a suspeita de que a mobilização não foi totalmente encerrada ao dizer que o decreto que a instituiu oficialmente continuava ativo na ocasião.

Novo recrutamento

Se havia alguma dúvida de que Putin pretende adicionar mais pessoas às Forças Armadas para combater na Ucrânia, ela foi desfeita no final da semana passada, quando o presidente ordenou que o efetivo fosse ampliado em 170 mil combatentes, de acordo com a agência Associated Press (AP).

Com base em decreto assinado no dia 1º de dezembro, ele determinou que a Rússia passe a ter 2,2 milhões de militares ativos, sendo 1,32 milhão de soldados. É ainda menos que o projetado em dezembro de 2022 pelo ministro da Defesa, segundo quem seria necessário ampliar o efetivo para 1,5 milhão de combatentes a fim de que as tropas russas mantenham a efetividade.

O Ministério da Defesa, entretanto, diz que não haverá um novo recrutamento e que a expansão acontecerá através da adição de novos voluntários. Uma justificativa no mínimo questionável, vez que o recrutamento voluntário segue aberto e não vem sendo capaz de atingir quaisquer das metas citadas.

Seja qual for o método, não bastará para silenciar mães e esposas. Afinal, mais homens serão enviados à morte, no momento em que as baixas russas parecem crescer consideravelmente. Levantamentos feitos por Kiev, alguns deles avalizados por entidades independentes ou governos estrangeiros, sugerem que os últimos meses registraram recordes de baixas nas forças russas.

No final de novembro, o Ministério da Defesa do Reino Unido afirmou que Moscou vinha perdendo em média 931 soldados por dia, entre mortos e feridos. Se confirmado, o número é recorde, vez que o mês mais mortífero até então havia sido o de março, com 776 baixas diárias. Em determinados dias, as baixas foram ainda mais severas, e o Estado-Maior das Forças Armadas ucranianas calcula que o total já supere os 330 mil soldados em toda a guerra.

Combatentes insatisfeitos

Não são apenas as mulheres que têm se erguido contra o governo em função da guerra. Desde a invasão, acumulam-se os registros de combatentes insatisfeitos, algo que a AP reforçou em uma reportagem recente baseada em ligações interceptadas provenientes da linha de frente.

As vozes nas chamadas, coletadas em conversas registradas ao longo de 2023, são de homens que não conseguiram fugir da mobilização, invariavelmente por falta de recursos. Alguns acreditavam no dever patriótico quando foram à guerra, enquanto outros tiveram que deixar suas ocupações profissionais para atender á convocação.

Os pedidos pelo fim do serviço militar, tantos os feitos pelas mulheres quanto pelos próprios combatentes, evidentemente não surtem efeito. Sequer são respondidos pelo governo, o que irrita ainda mais as russas.

“Nossa posição no início foi: sim, entendemos por que isso é necessário, apoiamos, ocupamos uma posição bastante leal”, disse Andreeva à Reuters. “Mas, agora, a posição, incluindo a minha, está mudando, porque vemos como estamos sendo tratadas e como nossos maridos estão sendo tratados.”

O único que se propôs a dar alguma satisfação foi o legislador Vitaly Milonov, que segundo o site PDM News alega ter ele mesmo servido no campo de batalhas na Ucrânia. Pego de surpresa e questionado publicamente por um grupo de esposas, limitou-se a dizer que os soldados mobilizados seriam substituídos por outros, mas não explicou quando nem como.

Considerando tudo que ocorreu até agora, o único cenário que se mostra realista é o de uma nova mobilização, contrariando as promessas em contrário do governo. Uma medida que, no final das contas, apenas substituiria o atual grupo de mulheres insatisfeitas por outro.

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