Nem crianças são poupadas pela Rússia na repressão aos críticos da guerra

Menina de nove anos e menino de dez anos passaram 15 minutos com a polícia após a mãe dizer que conflito é 'sem sentido e cruel'

Na Rússia, têm se acumulado os casos de crianças assediadas pelas autoridades em casos ligados à guerra da Ucrânia. Mais um episódio foi revelado nesta semana, de uma menina de nove anos de idade e um menino de dez interrogadas pelo FSB (Serviço de Segurança Federal, da sigla em inglês) porque a mãe de ambos manifestou oposição ao conflito. As informações são da rede Radio Free Europe (RFE).

A advogada Lidia Prudovskaya foi detida porque fez postagens na rede social VK, uma versão russa do Facebook, com críticas ao conflito. Embora os textos fossem visíveis somente por amigos, ela foi denunciada e detida pelas autoridades.

Nas publicações, Lidia teria dito que “a Rússia está destruindo a Ucrânia e a si mesma” e que a guerra é “absolutamente sem sentido e cruel”. Se for condenada, pode ser condenada a até cinco anos de prisão, embora a lei estabeleça que pessoas com filhos menores de 14 anos podem ter a pena adiada.

Levadas junto da mãe, as crianças foram separadamente interrogadas durante cerca de 15 minutos cada. Lidia não foi autorizada a ficar ao lado dos filhos, que segundo o FSB tiveram a companhia de uma psicóloga e de uma representante do serviço social.

Membros do FSB, o serviço de segurança federal da Rússia (Foto: WikiCommons)
Violência contra menores

Em março deste ano, uma criança já havia protagonizado um episódio de repressão estatal ligado à guerra. Na ocasião, Aleksey Moskalev, um cidadão russo, foi preso porque a filha dele, Masha, de 12 anos, havia feito cerca de um ano antes um desenho de protesto contra a guerra.

Na escola, em abril de 2022, a garota desenhou uma mulher vestindo as cores da bandeira ucraniana, com uma criança no colo e sob uma chuva de mísseis. A ilustração trazia ainda bandeiras dos dois países envolvidos na guerra e as frases “Não à guerra” e “Glória à Ucrânia”.

A professora de artes da menina levou o desenho ao diretor da escola, que por sua vez notificou as autoridades. Aleksey, então, passou a ser investigado pelo FSB, que foi detido pouco menos de um ano depois, quando inclusive já havia mudado de cidade para escapar da perseguição. Como o homem cria a filha sozinho, vez que a mãe da menina os abandonou, Masha foi enviada a um orfanato.

Já em, março do ano passado, duas mulheres e cinco crianças foram detidas temporariamente pelas autoridades russas após depositarem flores no prédio da embaixada da Ucrânia. Na ocasião, imagens das crianças em um camburão e na delegacia foram divulgadas no Twitter por Ilya Yashin, um político local que faz oposição ao governo de Vladimir Putin.

De acordo com a pesquisadora russa Alexandra Arkhipova, as crianças tinham à época entre 7 e 11 anos de idade e, além das flores, levavam cartazes de protesto desenhados por elas mesmas. “Os policiais gritavam com as mães e ameaçavam colocar seus filhos sob os cuidados do Estado, tirando delas os direitos sobre os filhos”, disse Arkhipova.

Por que isso importa?

Na Rússia, protestar contra o governo já não era uma tarefa fácil antes da eclosão da guerra na Ucrânia. Os protestos coletivos desapareceram das ruas a partir do momento em que a Justiça local passou a usar a pandemia de Covid-19 como pretexto para punir grandes manifestações, alegando que o acúmulo de pessoas feria as normas sanitárias. Assim, tornou-se comum ver manifestantes solitárias erguendo cartazes com frases contra o governo.

Desde a invasão do país vizinho por tropas russas, no dia 24 de fevereiro, o desafio dos opositores de Putin aumentou consideravelmente, com novos mecanismos legais à disposição do Estado e o aumento da violência policial para silenciar os críticos. Uma lei do início de março, com foco na guerra, pune quem “desacredita o uso das forças armadas”.

Dentro dessa severa nova legislação, os detidos têm que pagar multas que chegam a 300 mil rublos (R$ 22 mil). A pena mais rigorosa é aplicada por divulgar “informações sabidamente falsas” sobre o exército e a “operação militar especial” na Ucrânia, que é como o governo descreve a guerra. A reclusão pode chegar a 15 anos.

O cenário mudou levemente com a mobilização militar parcial anunciada no dia 20 de setembro. O risco de serem obrigados a lutar na Ucrânia levou milhares de reservistas a fugir do país, com fronteiras lotadas em países como GeórgiaMongólia e Cazaquistão. Entre os que ficaram, a ideia de aceitar a convocação nunca foi unanimidade, e protestos populares voltaram a ser registrados em todos os cantos. 

Somente na primeira semana que sucedeu o anúncio, a OVD-Info registrou quase 2,5 mil detenções em protestos populares contra a mobilização. E o número real de detidos tende a ser maior, vez que a entidade contabiliza somente os nomes que confirmou e que foi autorizada a divulgar, tendo sempre como base as listas fornecidas pelas autoridades.

Desde o início da guerra, a ONG reporta quase 20 mil mil detenções em protestos contra a guerra em todo o país. A enorme maioria, cerca de 15 mil, foi registrada no primeiro mês de conflito. Depois, houve um pico entre setembro e outubro, devido ao recrutamento. Entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023, foram registradas somente 22 detenções, um sinal de que a repressão estatal tem funcionado.

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