Em junho, uma tragédia na Ucrânia resultou na inundação de aldeias e comprometeu o abastecimento de água potável, enquanto os dois lados da guerra culparam um ao outro pela destruição.
A barragem Kakhovka, na região de Kherson, alegadamente destruída pelas forças de Vladimir Putin, era responsável por abastecer o sul do território ucraniano e a região da Crimeia, anexada ilegalmente por Moscou em 2014. Segundo Kiev, somente os danos ambientais são calculados em US$ 1,5 bilhão. Agora, o custo humano também vem à tona, conforme revelou a agência Associated Press (AP).
Meio ano depois da tragédia, uma investigação da AP revela que as autoridades de ocupação russas não apenas subestimaram, mas também deliberadamente ocultaram a verdadeira magnitude da tragédia, que marcou um dos tantos episódios calamitosos nos quase dois anos de guerra na região.
O controle russo sobre as certidões de óbito tornou-se um instrumento de manipulação, permitindo que as autoridades excluíssem da conta as vítimas cujos corpos não foram reclamados por familiares. Profissionais de saúde e voluntários locais, que buscavam lidar com a devastação, foram confrontados com ameaças ao desafiarem essas ordens.
Svitlana, uma profissional de saúde que optou por se identificar apenas pelo primeiro nome, testemunhou a tragédia e foi ouvida pela reportagem. Enfermeira-chefe do Hospital Multidisciplinar do Distrito de Oleshky, o principal centro de saúde primário da cidade, ela ressalta que tanto Rússia quanto Ucrânia subestimam a verdadeira escala do desastre.
Enquanto Moscou relata 59 mortes em suas áreas controladas, estimativas ucranianas sugerem que na cidade de Oleshky, ocupada pelas forças invasoras, o número de vítimas pode chegar a centenas, contrastando com a população oficial de 16 mil habitantes durante as inundações.
A incerteza persiste sobre o número exato de mortos em Oleshky e na região, uma vez que investigações locais podem ser dificultadas mesmo se as forças ucranianas retomarem o território.
A AP conduziu entrevistas com profissionais de saúde, voluntários e fontes ucranianas que relataram valas comuns cavadas e corpos não identificados levados sem qualquer registro. A investigação envolveu entrevistas adicionais com moradores, voluntários e fugitivos da área, além do acesso a um grupo no Telegram com três mil residentes de Oleshky, no qual foram compartilhadas informações sobre corpos nas ruas, ações da polícia e um grande número de desaparecidos.
A barragem Kakhovka, com 30 metros de altura e 3,2 quilômetros de comprimento, faz parte de uma usina hidrelétrica e retém um grande reservatório no rio Dnipro. Desde a invasão russa, em fevereiro de 2022, a represa vinha sendo fonte constante de tensão.
O colapso da barragem, no dia 6 de junho, levou a uma troca de acusações entre os governos russo e ucraniano, que se eximem de responsabilidade pelo ocorrido e culpam o outro lado. Casas e empresas foram inundadas à medida que a água fluía rio abaixo, levando à evacuação de milhares de habitantes de áreas afetadas.
A inundação resultante do rompimento também gerou consequências ambientais e sociais. A situação foi definida è época por Kiev como “o maior desastre ambiental causado pelo homem na Europa em décadas.”
Explosão
Três dias depois do colapso, a agência Reuters afirmou haver evidências cada vez maiores de que uma explosão provocou o desastre. Tal alegação se baseia em relatórios dos serviços de inteligência da Ucrânia e dos EUA e de dados sísmicos coletados pela Noruega.
“As evidências e análises das informações disponíveis, que incluem sensores sísmicos e discussões com os principais especialistas em demolição, indicam que há uma alta probabilidade de que a destruição tenha sido causada por explosivos pré-posicionados em pontos críticos dentro da estrutura da barragem”, endossou um relatório da fundação de direitos humanos Global Rights Compliance, que esteve na Ucrânia a convite de promotores ucranianos
Negligência
Enquanto as inundações devastavam a região, as autoridades de ocupação russas se ausentaram nos primeiros três dias, embora tenham assegurado que a situação “não era crítica”. Isso deixou os moradores lidando com a tragédia sem apoio, enquanto a polícia e promotores indicados pela Rússia abandonaram os locais afetados.
Entre 200 e 300 pessoas foram estimadas pelos profissionais de saúde como vítimas de afogamento em Oleshky. Muitos eram idosos, incapazes de sair de suas casas ou subir ao telhado, conforme relatos de voluntários de resgate, moradores e profissionais de saúde.
Para muitos sobreviventes, o Hospital Multidisciplinar tornou-se um abrigo. Segundo Svitlana, o estado de decomposição dos corpos causou o inchaço de muitos cadáveres, resultando em uma cena em que corpos “flutuavam pela cidade como balões”.
Profissionais de saúde, diante da proibição das autoridades de ocupação de emitir certidões de óbito em ucraniano, agiram em segredo para manter o registro médico atualizado em Kiev. Os residentes recebiam dois certificados, um para as novas autoridades e outro para preservar suas raízes, sendo instruídos a esconder este último.
Esse mesmo procedimento foi seguido após o rompimento da barragem. Cerca de 15 certidões de óbito, todos relacionados à asfixia por afogamento, foram enviadas eletronicamente à diretora médica do centro de saúde no exílio. Svitlana manteve contato direto durante esse período.
A polícia frequentava o hospital diariamente para obter cópias das certidões de óbito, garantindo a conformidade com as regras russas. Menos de 50 corpos foram encaminhados para novos centros de autópsia, mas isso não reflete o número total de mortos. É preciso considerar ainda as mortes causadas pela tragédia, mas registradas de outra forma.
Os residentes eram instruídos a ligar diretamente para a polícia, que cobrava uma taxa de 10 mil rublos (cerca de R$ 524) para coletar os corpos e assim evitava o hospital. Aqueles incapazes de pagar pediam aos médicos para registrar uma causa de morte diferente, como “ataque cardíaco”, para facilitar um sepultamento rápido.