Assassinatos de civis aumentam com a presença de mercenários russos na África Ocidental

Moradores de comunidades rurais, que antes conviviam com a cobrança de impostas de rebeldes islâmicos, nos últimos meses têm sido aterrorizados pelo Wagner Group

Após 300 pessoas terem sido supostamente mortas em março por mercenários russos na cidade de Moura, na região central do Mali, o derramamento de sangue só aumentou.

Esse tipo de episódio, cada vez mais comum em outros pontos do país de lá para cá, tem sido associado à presença do Wagner Group, misteriosa organização possivelmente ligada ao Kremlin que chegou a Bamaco em 2021, após fechar um acordo com os novos governantes militares. As informações são do jornal Washington Post.

Antes, os moradores de comunidades rurais conviviam com o assédio de rebeldes islâmicos, que molestavam as populações com cobrança de dinheiro ou gado, o que servia como pagamento de “imposto”. Há dois meses, a ameaça se revelou outra: homens brancos, com vestes militares e falando em linguagem desconhecida aos aldeões.

Mercenários do Wagner Group no front (Foto: Twitter/Reprodução)

De acordo com uma testemunha, o grupo chegou e promoveu uma matança.

“Eles estavam atirando nas pessoas. Pessoas em suas casas”, contou o homem. “Em todos os lugares, corpos caíam no chão”.

Relatos semelhantes têm aparecido em todos os cantos da nação da África Ocidental desde que centenas de milicianos russos engrossaram as fileiras do exército maliense no front contra facções ligadas à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico (EI) para recuperar território.

Com largo histórico de abusos de direitos humanos em lutas armadas na Líbia, na Síria, na República Centro-Africana, em Moçambique e agora na Ucrânia, o Wagner Group estaria rendendo lucros a Moscou com tais alianças de segurança. Segundo funcionários da inteligência ocidental e pesquisadores do setor, o trabalho dos mercenários estaria reforçando os cofres do governo de Vladimir Putin em uma época de crescente isolamento econômico por conta da invasão à Ucrânia.

Relatos governamentais sugerem atrocidades do grupo. Na Líbia, funcionários da defesa dos EUA acusam os milicianos de plantarem explosivos em brinquedos para crianças. Na República Centro-Africana, investigadores a serviço de grupos de direitos humanos apuram relatos de violência sexual praticada contra mulheres jovens e até crianças.

Matança ‘pela paz’

Testemunhas relataram à reportagem que homens, os quais eles creem ser agentes russos, mataram dezenas de inocentes nos últimos meses sob a justificativa de “restaurar a paz”.

“Há muitos relatos de testemunhas oculares sobre a presença de soldados brancos falando uma língua desconhecida”, disse Héni Nsaibia, pesquisador sênior do Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados (ACLED, da sigla em inglês), que documenta eventos violentos em todo o mundo.

Para Nsaibia, as evidências visuais documentadas por ele, sugerem fortemente que eles (os agressores) “são empreiteiros militares russos privados e não forças russas convencionais”.

Segundo dados também organizados pelo ACLED, cerca de 456 civis morreram em nove incidentes que envolveram o exército local e os mercenários russos no período de janeiro a meados de abril de 2022.

A presença dos milicianos também seria responsável por um êxodo de malianos: muitos estão fugindo para a Mauritânia desde a chegada do grupo. De acordo com a agência de refugiados da ONU (Organização das Nações Unidas), o contingente que vive em um campo de refugiados próximo à fronteira com a vizinha quadruplicaram desde fevereiro.

Grupos que monitoram mortes de civis coordenados por forças de segurança alegam que as fatalidades dispararam.

Governo nega

A junta militar do Mali, que tomou o poder após um golpe em maio do ano passado, alega que os russos no país são instrutores e “não estão em funções de combate”. Fontes sustentam que o pagamento pelos serviços do Wagner Group seria de US$ 10,8 milhões (cerca de R$ 56,7 milhões) por mês, dinheiro que vem da extração de minerais, acreditam os especialistas. Os combatentes ainda seriam responsáveis pelo treinamento de militares do Mali, bem como estariam dando proteção a oficiais graduados.

A aliança teve oposição da França, já que o governo Macron destacou tropas para o oeste do Sahel, onde as forças passaram oito anos lutando contra grupos jihadistas na conturbada região.

Organização obscura

Oficialmente, o Wagner Group sequer existe. Mas há indícios de que ao menos 10 mil pessoas já atuaram para a misteriosa organização, cuja primeira empreitada de que se tem notícia foi em 2014, quando se aliou a separatistas pró-Rússia contra o governo da Ucrânia. Desde então, há sinais de presença do grupo em conflitos em diversos países, como Líbia, Síria, Sudão, Moçambique e República Centro Africana.

Em agosto, um tablet perdido ajudou a expor os segredos da organização. Uma reportagem da rede britânica BBC teve acesso ao equipamento, que expõe a participação da milícia na guerra civil da Líbia, sugere a proximidade entre associados do grupo e o governo russo e dá fortes indícios de que os mercenários são responsáveis por inúmeros crimes de guerra.

Por que isso importa?

A instabilidade no Mali começou com o golpe de Estado em 2012, quando vários grupos rebeldes e extremistas tomaram o poder no norte do país. De quebra, a nação, independente desde 1960, viveu em maio de 2021 o terceiro golpe de Estado em um intervalo de apenas dez anos, seguindo o que já havia ocorrido em 2012 e também em 2020.

A mais recente turbulência política começou semanas antes do golpe, com a demissão do primeiro-ministro Moctar Ouane pelo presidente Bah Ndaw. Reconduzido ao cargo pouco depois, Ouane não conseguiu formar um novo governo, e a tensão aumentou com a falta de pagamento dos salários dos professores. O maior sindicato da categoria, então, começou a se preparar para uma greve.

Veio a noite do dia 24 de maio, quando o coronel Assimi Goita, vice-presidente do país, destituiu Ndaw e Ouane de seus cargos e ordenou a prisão de ambos na capital Bamako. Segundo ele, os dois líderes civis violaram a carta de transição ao não consultarem o militar na formação do novo governo.

Ao contrário do que ocorreu em golpes anteriores, que contaram com apoio popular, desta vez a maior parte da população malinesa rejeitou a tomada de poder por Goita, que derrubou o governo de transição recém-instituído e assumiu o comando do país. A população civil não foi às ruas protestar contra o militar, mas usou as redes sociais para mostrar sua insatisfação.

Militarmente, especialistas e políticos ocidentais enxergam uma geopolítica delicada na região, devido ao aumento constante da influência de grupos jihadistas ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico (EI) e à consequente explosão da violência nos confrontos entre extremistas e militares. Além disso, trata-se de uma posição importante para traficantes de armas e pessoas, e o processo em curso de redução das tropas franceses, que atuam no país desde 2013, tende a piorar a situação.

Os conflitos, antes concentrados no norte do país, se expandiram inclusive para os vizinhos Burkina Faso e Níger. A região central do Mali se tornou um dos pontos mais violentos de todo o Sahel africano, com frequentes assassinatos étnicos e ataques extremistas contra forças do governo.

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