O governo norte-americano acusou formalmente o Wagner Group, uma organização paramilitar ligada ao governo da Rússia, de envolvimento em um massacre de civis ocorrido em uma aldeia do Mali em março de 2022. Os mercenários são parceiros do governo maliano no combate ao terrorismo, uma aliança que gera críticas ocidentais e surgiu em meio à retirada do país africano das forças armadas da França, até então tradicionais parceiras de Bamako.
“Em março de 2022, elementos das Forças Armadas do Mali, com o apoio de integrantes do Wagner Group, organização criminosa transnacional apoiada pelo Kremlin, conduziram uma operação militar em Moura, no Mali, que matou mais de 500 pessoas”, diz comunicado divulgado na quinta-feira (25) pelo Departamento de Estado.
Com a manifestação, Washington endossa uma investigação conduzida nos últimos meses pela ONU (Organização das Nações Unidas), que atribuiu o massacre às forças armadas malianas apoiadas por “militares estrangeiros”.
Diferente do Departamento de Estado, entretanto, o relatório da ONU não cita nominalmente o Wagner Group. Diz apenas que “homens brancos armados”, que falavam uma língua desconhecida, davam suporte às forças armadas do Mali.
As investigações das Nações Unidas indicaram que as autoridades malianas realizavam uma missão de contraterrorismo contra o grupo Katiba Macina, facção do Grupo de Apoio ao Islã e aos Muçulmanos (GSIM, na sigla em francês), que por sua vez é um braço da Al-Qaeda.
Durante o confronto, militantes do Katiba Macina que estavam na multidão dispararam de volta contra as tropas. Nesse primeiro momento foram registradas as mortes de pelo menos 20 civis e cerca de uma dúzia de supostos membros da organização extremista.
A essa troca de tiros inicial se seguiram quatro dias de violência na aldeia, com ao menos 500 pessoas assassinadas, muitas delas sumariamente executadas. Dessas vítimas, somente 238 foram devidamente identificadas pela ONU.
Sanções econômicas
Além de denunciar formalmente o Wagner, o Departamento do Tesouro anunciou sanções contra militares envolvidos no massacre. Os alvos são o coronel Moustaph Sangare e o major Lassine Togola, responsáveis pelo destacamento das forças armadas do Mali que conduziram a operação em Moura. Também foi punido Ivan Aleksandrovich Maslov, líder do Wagner Group no Mali.
“As sanções do Tesouro contra o representante mais antigo do Wagner Group no Mali identificam e interrompem um importante agente que apoia as atividades globais do grupo”, disse o subsecretário do Tesouro para Terrorismo e Inteligência Financeira, Brian E. Nelson. “A presença do Wagner Group no continente africano é uma força desestabilizadora para qualquer país que permita a implantação dos recursos do grupo em seu território soberano.”
No anúncio, Washington cita ainda o envolvimento da organização mercenária na aquisição de armas para as forças russas que lutam na guerra da Ucrânia, movimentação contra a qual já existem sanções em vigor. “Há indícios de que o Wagner Group tem tentado comprar sistemas militares de fornecedores estrangeiros e encaminhar essas armas através do Mali como terceiros”, diz o comunicado.
As sanções significam que eventuais bens que os sancionados tenham nos EUA devem ser bloqueados e reportados às autoridades. Pessoas e entidades norte-americanas ou que atuem no território norte-americano também são proibidas de realizar transações com os sancionados, a menos que autorizadas por uma licença geral ou específica.
Por que isso importa?
O Mali vive um período de instabilidade que começou com o golpe de Estado em 2012, quando grupos rebeldes e insurgentes islâmicos tomaram o poder no norte do país. De quebra, a nação, independente desde 1960, viveu em maio de 2021 o terceiro golpe de Estado em um intervalo de apenas dez anos, seguindo o que já havia ocorrido em 2012 e também em 2020.
A mais recente turbulência política começou semanas antes do golpe, com a demissão do primeiro-ministro Moctar Ouane pelo presidente Bah Ndaw. Reconduzido ao cargo pouco depois, Ouane não conseguiu formar um novo governo, e a tensão aumentou com a falta de pagamento dos ingressos dos professores. O maior sindicato da categoria, então, começou a se preparar para uma greve.
Veio a noite do dia 24 de maio, quando o coronel Assimi Goita, vice-presidente do país, destituiu Ndaw e Ouane de seus cargos e ordenou a prisão de ambos na capital Bamako. Segundo ele, os dois líderes civis violaram a carta de transição ao não consultarem os militares na formação do novo governo.
Ao contrário do que ocorreu em golpes anteriores, que contaram com apoio popular, desta vez a maior parte da população rejeitou a tomada de poder por Goita, que derrubou o governo de transição recém-instituído e assumiu o comando do país. A população civil não foi às ruas protestar contra o militar, mas usou as redes sociais para mostrar sua insatisfação.
Em meio à instabilidade política, cresceu no país a presença de grupos jihadistas ligados à Al-Qaeda e principalmente ao Estado Islâmico (EI), o que levou a uma explosão de violência nos confrontos entre extremistas e militares, com milhares de civis entre as vítimas.
Os conflitos, antes concentrados no norte do Mali, se expandiram inclusive para os vizinhos Burkina Faso e Níger. Assim, a região central maliana se tornou um dos pontos mais violentos de todo o Sahel africano, com frequentes assassinatos étnicos e ataques extremistas contra as forças do governo.
A situação tornou-se ainda mais delicada devido à retirada das tropas da França, que até agosto de 2022 colaboravam com o governo nacional nas operações de contraterrorismo. A decisão de Paris de evacuar seus militares gerou dúvidas quanto à capacidade de o país africano sustentar os avanços obtidos na luta contra os insurgentes.
Quem assumiu o espaço deixado pelos franceses foi o Wagner Group, um grupo russo de mercenários que firmou acordo de cooperação com Goita. Fontes sustentam que o pagamento pelos serviços da organização russa seria de US$ 10,8 milhões por mês, dinheiro que viria da extração de minerais.
Segundo o general francês Laurent Michon, comandante da Operação Bakhane das forças armadas da França, a retirada de suas tropas não tem nenhuma relação com a chegada dos mercenários, como se especulava. Ele diz que o governo militar maliano sempre deixou claro seu desejo de “nos ver partir sem demora”.