Tunísia impõe lei contra notícias falsas e gera questionamento sobre liberdade de expressão

Comissão Internacional de Juristas afirma que o presidente Kais Saied está restringindo o espaço para a livre expressão na internet

A Comissão Internacional de Juristas (ICJ, da sigla em inglês), com sede em Genebra, criticou firmemente a imposição de uma lei na Tunísia que criminaliza a disseminação do que o governo considera “notícias falsas”. A legislação foi promulgada diretamente pelo presidente Kais Saied após a suspensão do parlamento em 2021, quando ele passou a governar por decreto e assumiu o controle sobre o Judiciário. As informações são da agência Al Jazeera.

O grupo de direitos humanos argumenta que a medida permite a repressão de qualquer informação com a qual o mandatário não concorde. Desde sua introdução, a medida tem sido usado para atingir opositores e críticos do líder tunisiano, resultando na prisão de várias pessoas.

Em setembro de 2022, Saied emitiu o Decreto 54, que criminaliza o compartilhamento de informações falsas por meios eletrônicos, sendo apoiado por seus defensores como uma medida essencial para combater a desinformação.

O presidente da República da Tunísia Kais Saied em 2019 (Foto: WikiCommons)

A crítica principal do ICJ concentra-se no Artigo 24 do decreto, que prevê até cinco anos de prisão e multas de até US$ 15 mil (cerca de R$ 72 mil) para quem dissemina “informações falsas e boatos” online. Essa pena é duplicada se a declaração ofensiva for direcionada a um funcionário do estado.

Os críticos destacam que a falta de uma definição clara do que constitui “informação falsa ou boato” concede aos legisladores uma ferramenta fácil para reprimir o discurso crítico, levantando preocupações sobre o uso da lei para censurar opiniões dissidentes.

Conforme apontado pelo ICJ, o Decreto possibilita que as autoridades exerçam um controle injustificado sobre a liberdade de expressão de indivíduos, incluindo políticos, jornalistas e defensores dos direitos humanos.

“As autoridades tunisianas estão usando o Decreto 54 para silenciar arbitrariamente vozes dissidentes e independentes, em clara violação das obrigações do país sob a lei internacional de direitos humanos”, disse Said Benarbia, diretor do ICJ. “Eles devem revogar o Decreto 54 e encerrar todos os procedimentos arbitrários iniciados para fazer cumprir suas disposições.”

Desde a implementação da lei, pelo menos 14 indivíduos já estão sendo investigados, com alguns deles cumprindo pena na prisão. O ICJ afirmou que muito provavelmente há muitos outros casos em andamento.

Casos

Em outubro passado, o advogado tunisiano Mehdi Zagrouba fez uma postagem no Facebook acusando o ministro da Justiça de manipular provas em um processo envolvendo 57 juízes do país, acusados de corrupção e supostos atrasos em casos de “terrorismo“. Zagrouba foi sentenciado a 11 meses de prisão e proibido de exercer advocacia por cinco anos.

No mesmo mês, Ahmed Hamada, estudante de direito e blogueiro, fez uma postagem no Facebook criticando a polícia em seu bairro. Ele ainda enfrenta processos criminais em aberto.

Já o editor de um site de notícias local, Nizar Bahloul, está sendo investigado por escrever um artigo de opinião considerado crítico à primeira-ministra do país, Najla Bouden Romdhane. Esse caso ainda está em curso.

A CIJ instou as autoridades tunisianas a retirarem todas as acusações contra as pessoas atualmente detidas sob o decreto, bem como o pagamento de reparações por quaisquer danos sofridos. Além disso, eles exigem o fim da prática de julgar civis em tribunais militares e o fim aos ataques políticos direcionados a advogados, opositores políticos e jornalistas.

Em janeiro, cinco relatores especiais da ONU (Organização das Nações Unidas) manifestaram “profunda preocupação” em relação ao decreto e questionaram sua compatibilidade com o direito internacional.

Por que isso importa?

A instabilidade política na Tunísia se intensificou no final de julho de 2021, quando Saied destituiu o primeiro-ministro Hichem Mechichi, suspendeu as atividades do Parlamento e concentrou em suas mãos quase todos os poderes do Estado.

Além disso, Saied suspendeu a imunidade parlamentar dos legisladores e assumiu poderes judiciais. No dia 14 de julho, antes de derrubar o governo, ele também ordenou a abertura de uma investigação contra três partidos políticos suspeitos de receberem fundos estrangeiros antes das eleições de 2019, na qual ele saiu vitorioso.

A intervenção de Saied, que colocou em xeque os avanços democráticos do país conquistados desde a Primavera Árabe, em 2011, se segue a anos de crise econômica e inércia política, a que se soma a pandemia de Covid-19 e um processo de vacinação popular lento.

Nos últimos dez anos, o país acumulou problemas. Teve dez primeiros-ministros diferentes, que falharam em combater a corrupção e em estabilizar economicamente o país. Novato na política, o jurista Saied era uma aposta dos tunisianos para mudar a situação. O discurso anticorrupção e a rejeição ao sistema político tradicional permitiram a ele vencer o pleito com mais de 70% dos votos.

No dia 24 de julho de 2021, um dia antes de Saied derrubar o governo, os tunisianos foram às ruas protestar mais uma vez. Veio, então, a queda do primeiro-ministro e a suspensão do Parlamento. Para os partidos de oposição, sobretudo o Ennahda, as ações do presidente configuram um golpe de Estado.

A favor de Saied sempre pesou o apoio do exército, que já agiu para impedir o acesso de deputados e outros representantes populares ao Parlamento. A população desde então se divide entre apoiar e contestar as medidas.

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