Criticado por russos, ucranianos e americanos, Brasil sofre pressão para se posicionar na guerra

País se apresenta como moderador, ma incomoda a comunidade internacional ao culpar Moscou e Kiev pela invasão russa

Por Paulo Tescarolo

A posição do Brasil no que tange à guerra da Ucrânia é nebulosa. Em fóruns oficiais, o país já condenou a Rússia pela invasão e tem se colocado como um moderador, apresentando inclusive proposta formal para tentar encerrar o conflito. Entretanto, o governo brasileiro joga dos dois lados. Já deixou claro, por exemplo, que não fornecerá munição aos ucranianos. Pior: invariavelmente, reparte entre Moscou e Kiev a responsabilidade pela guerra. Tal comportamento gera críticas de todos os lados, com a demanda crescente para que que o país se posicione de forma incisiva contra a agressão.

Em sessão do Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) no dia 24 de fevereiro, quando a agressão russa completou um ano, o embaixador brasileiro nas Nações Unidas, Ronaldo Costa Filho, disse que o Brasil “condena a invasão russa e a violação territorial de um Estado soberano, a Ucrânia”. Destacou, ainda, que foi o país quem sugeriu a inclusão do termo “cessação das hostilidades” em uma resolução do órgão, no qual ocupa assento não permanente.

Na visão de Richard Gowan, diretor da ONG Internacional Crisis Group para questões ligadas à ONU, a expressão ilustra bem a posição dúbia do Brasil. “Em vez de ordenar às partes para cessarem fogo, o Brasil gabou-se de ter persuadido a Ucrânia e seus aliados a se referirem à necessidade de uma ‘cessação das hostilidades'”, disse ele. “Esta frase é utilmente aberta a uma variedade de interpretações, como sempre”. 

Nesse sentido, o presidente Lula foi mais longe. Em entrevista à revista Time quando ainda era candidato, em maio de 2022, ele disse que o homólogo ucraniano Volodymyr Zelensky “é tão responsável quanto Putin pela guerra”.

Lula e Putin durante reunião em Moscou em 2005 (Foto: Agência Brasil/WikiCommons)

Na mesma entrevista, Lula ainda fortaleceu a retórica russa de que a agressão foi provocada. “Putin não deveria ter invadido a Ucrânia. Mas não é apenas Putin que é culpado. Os EUA e a União Europeia (UE) também são culpados. Qual foi o motivo da invasão da Ucrânia? A Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte)? Então, os EUA e a Europa deveriam ter dito: ‘A Ucrânia não se juntará à Otan’. Isso teria resolvido o problema”, disse ele na ocasião.

O argumento de Lula, porém, não convence Flávio de Leão Bastos Pereira, professor de Direitos Humanos e Direito Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie e professor convidado na Universidade de Nuremberg, na Alemanha, onde aborda o tema genocídio. “A Ucrânia foi invadida. A Ucrânia não pode ser responsabilizada por uma invasão que se prenunciava há meses”, disse ele em conversa com A Referência, referindo-se ao acúmulo de tropas russas na fronteira antes da agressão.

Bastos Pereira destaca ainda o aspecto jurídico da invasão, que pesa contra Moscou. “Hoje, um país pode usar a força em duas situações. A primeira, na autodefesa, sob a perspectiva de um ataque iminente que vá sofrer”, explicou. “A segunda hipótese se dá quando o Conselho de Segurança autoriza uma coalizão internacional militar”, acrescentou, citando duas situações nas quais não se enquadra o ataque russo.

Diante desse cenário, opina o professor, “o Brasil precisa se postar do lado do direito internacional”.

Essa é também a posição de Washington, que lidera a aliança ocidental em favor da Ucrânia e já deixou claro que gostaria de ter o Brasil a seu lado. Em fevereiro, a embaixadora Victoria Nuland, subsecretária de assuntos políticos do governo norte-americano, pediu ao Brasil “que se coloque no lugar da Ucrânia”.

“Se um grande vizinho estivesse mordendo pedaços de seu território e invadindo-o militarmente, você esperaria e contaria com o apoio da comunidade democrática para resistir e repelir isso?”, declarou ela. “Então, o que estamos defendendo aqui é a Carta da ONU, as regras internacionais de trânsito. O Brasil, agora no Conselho de Segurança da ONU, é um jogador muito importante nessa conversa”.

Até cidadãos russos cobram uma posição incisiva do Brasil de condenação à invasão e defesa da Ucrânia. É o caso do jornalista Kiril Martinov, chefe de redação do Novaya Gazeta Europa, braço internacional do jornal que foi forçado a encerrar as atividades dentro da Rússia devido à perseguição estatal.

“Esse é o tempo que a comunidade internacional, todos os governos democráticos — como o Brasil, que é líder da América do Sul —, precisam enviar uma mensagem clara a [Vladimir] Putin: ele nunca terá nenhuma aliança se não interromper a guerra”, disse Martinov ao jornal Folha de S. Paulo neste mês. “[O Brasil] ainda não [deixou clara sua posição]. Eu acredito que é tempo de discutir este ponto”.

Tristeza ucraniana

A situação é ainda mais dolorosa para os ucranianos que vivem no Brasil. Caso de Anastasiia Syvash, 35 anos, ilustradora e designer radicada em Salvador. Ela contou à reportagem de A Referência que vivia no Brasil havia um ano e meio quando a invasão russa ocorreu. Foi à Ucrânia visitar a mãe em fevereiro de 2022 e saiu do país três dias antes do início da guerra.

Anastasiia Syvash, ilustradora e designer ucraniana radicada em Salvador (Foto: arquivo pessoal)

“Minha mãe ficou na Ucrânia nos primeiros dez dias da guerra em grande escala, na cidade de Kharkiv, que fica a 30 quilômetros da fronteira da Ucrânia com a Rússia e foi bombardeada desde o primeiro dia“, conta ela.

Hoje, a mãe de Anastasiia está no Brasil. Chegou em março do ano passado, após uma longa viagem de dez dias desde Kharkiv, e obteve o visto humanitário. “Nós esperamos que a política do governo nesse sentido não mude e que ela possa permanecer no Brasil mesmo depois dos dois anos de visto humanitário”.

No entanto, a jovem ucraniana diz que, diferente de outros países, o Brasil não oferece ajuda estatal aos refugiados ucranianos. “Recebemos apoio de amigas e amigos, das comunidades de migrantes no Brasil. Mas nenhuma delas é associada a alguma instituição do governo”, relata. “Minha mãe é aposentada, mas antes de fugir da guerra ela trabalhava como arquiteta. Hoje ela não tem emprego, e é difícil achar emprego aqui por causa da barreira do idioma”.

Ao abordar o posicionamento do Brasil em relação ao conflito, Anastasiia mostra-se triste. “Dói muito ver a suposta ‘neutralidade’ enquanto o mundo todo apoia a Ucrânia, sabendo que o nosso inimigo ameaça o mundo inteiro, incluindo o Brasil, com as armas nucleares”.

E acrescenta. “O governo brasileiro deve entender que é muito perigoso flertar com a ditadura e deixar impune o agressor que representa uma ameaça mundial e demonstra a indiferença com qualquer tipo de negociação. Apoiar a paz só é possível apoiando a Ucrânia na defesa da sua terra e do seu povo. Não existe paz no apoio ao agressor”.

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