China trabalha nos bastidores para vetar relatório sobre abusos em Xinjiang

Beijing enviou carta a diplomatas em busca de apoio para impedir a publicação de um relatório prometido pela ONU

A China tem trabalhado nos bastidores para impedir que a ONU (Organização das Nações Unidas), em particular a alta comissária para os direitos humanos Michelle Bachelet, publique o prometido relatório sobre as violações dos direitos humanos em Xinjiang. É o que aponta uma carta redigida por Beijing, obtida pela Reuters e cuja autenticidade foi confirmada por diplomatas de três países que a receberam.

A histórica viagem de Bachelet à região chinesa, em maio, gerou críticas de grupos humanitários e governos ocidentais. A alegação é a de a passagem da chilena pelo país asiático serviria para mascarar os abusos cometidos por Beijing contra minorias como a dos uigures, principal tema da visita.

Após a viagem, a declaração amena publicada no site da ONU deu razão aos questionamentos. Bachelet disse na ocasião que a “visita não foi uma investigação”, mas “uma oportunidade para manter discussões diretas” com lideranças chinesas sobre direitos humanos. Sobraram até elogios ao governo do Partido Comunista Chinês (PCC) por “reduzir a pobreza e erradicar a pobreza extrema” dez anos antes do prazo.

Michele Bachelet, alta comissão da ONU para direitos humanos, na China (Foto: divulgação)

Ainda assim, havia a promessa de que publicasse um relatório aprofundado sobre a região do noroeste da China, onde algumas nações acusam o governo chinês de genocídio pelo tratamento dispensado à minoria étnica dos uigures. Isso aconteceria até o final de agosto, quando Bachelet deixará o cargo. Agora, entretanto, Beijing trabalha para enterrar o documento.

Nesse sentido, a carta endereçada aos diplomatas manifesta “grave preocupação” com o futuro relatório e pede aos países que a assinem, manifestando assim apoio à censura. Já uma segunda edição da carta contesta a legitimidade de Bachelet, alegando que o relatório seria redigido “sem mandato e em grave violação dos deveres do ACNUDH (Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos)”.

“A avaliação, se publicada, intensificará a politização e o confronto do bloco na área de direitos humanos, minará a credibilidade do ACNUDH e prejudicará a cooperação entre o ACNUDH e os Estados-Membros”, diz o texto, citando o escritório de Bachelet em Genebra. “Pedimos fortemente à Senhora Alta Comissária que não publique tal avaliação”.

Para o movimento brasileiro Democracia Sem Fronteiras (DSF), que frequentemente protesta contra a repressão do governo chinês, “as graves violações aos direitos humanos que ocorrem na China, principalmente, ligadas às minorias uigures, não podem ser escondidas”.

“O Democracia Sem Fronteiras está confiante de que o relatório não será silenciado e torcemos que os países democráticos apliquem sanções à China por essas violações”, disse o movimento em contato com a reportagem de A Referência.

A “verdadeira Xinjiang”

De acordo com Liu Yuyin, porta-voz da missão diplomática da China em Genebra, quase cem países declararam apoio a Beijing em questões relacionadas a Xinjiang, bem como manifestaram “sua objeção à interferência nos assuntos internos da China sob o pretexto dos direitos humanos“.

Já um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês disse que Bachelet teria testemunhado uma “verdadeira Xinjiang, com uma sociedade segura e estável”, durante a visita de maio. E que a tentativa de alguns países de “manchar a imagem da China” usando essa questão não teriam sucesso.

A iniciativa de Beijing, entretanto, não é incomum, vez que Estados-membros invariavelmente fazem uso de memorandos para angariar o apoio de outros Estados-Membros para suas causas.

Por que isso importa?

A província de Xinjiang, no noroeste da China, faz fronteira com países da Ásia Central, com quem divide raízes étnicas e linguísticas. Ali vive a comunidade uigur, uma minoria muçulmana de raízes turcas que sofre perseguição do governo chinês, com acusações de abusos diversos.

Os uigures, cerca de 11 milhões, enfrentam discriminação da sociedade e do governo chinês e são vistos com desconfiança pela maioria han, que responde por 92% dos chineses. Denúncias dão conta de que Beijing usa de tortura, esterilização forçada, trabalho obrigatório e maus tratos para realizar uma limpeza étnica e religiosa em Xinjiang.

Estimativas apontam que um em cada 20 uigures ou cidadãos de minoria étnica já passou por campos de detenção de forma arbitrária desde 2014.

O governo de Joe Biden, nos EUA, foi o primeiro a usar o termo “genocídio” para descrever as ações da China em relação aos uigures. Em seguida, Reino Unido e Canadá também passaram a usar a designação, e mais recentemente a Lituânia se juntou ao grupo.

A China nega as acusações de que comete abusos em Xinjiang e diz que as ações do governo na região têm como finalidade a educação contraterrorismo, a fim de conter movimentos separatistas e combater grupos extremistas religiosos que eventualmente venham a planejar ataques terroristas no país. Beijing costuma classificar as denúncias como “a mentira do século”.

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