Junta militar de Mianmar se reuniu duas vezes com líder democrática para negociar a paz

Suu Kyi recebeu visitas de três oficiais militares na prisão, mas rejeitou os pedidos para intermediar um acordo que desse fim à tensão no país

A junta de Mianmar, responsável por um golpe de Estado em fevereiro de 2021, tentou em duas ocasiões obter a ajuda de Aung San Suu Kyi, líder democrática do partido deposto LND (Liga Nacional pela Democracia), para as negociações de paz com a resistência armada. No entanto, Suu Kyi rejeitou as solicitações dos oficiais militares, segundo informações da rede Radio Free Asia (RFA).

Os encontros ocorreram em 27 de maio e 4 de junho, quando três oficiais militares visitaram Suu Kyi na prisão em que ela cumpre pena na capital Naipidau. Entre eles estavam o tenente-general So Htut, ministro do Interior da junta, o tenente-general Yar Pyae, encarregado das negociações de paz com grupos étnicos rebeldes, e o tenente-general aposentado Khin Zaw Oo.

Segundo uma fonte, que falou anonimamente por não estar autorizada a falar com a mídia, os generais se encontraram com Suu Kyi em duas ocasiões. Eles a instaram a ajudar a junta em seus esforços de pacificação em meio à situação política atual e a conter a violência. No entanto, segundo informações, a ex-presidente não respondeu a esses apelos.

A ativista e ex-presidente de Mianmar, Aung San Suu Kyi, em visita ao Kremlin, na Rússia, em abril de 2019 (Foto: Kremlin)

Desde o golpe, a junta militar de Mianmar está envolvida em um conflito prolongado com grupos armados de resistência e organizações étnicas armadas cada vez mais poderosas – entre eles o movimento crescente chamado Força de Defesa do Povo (PDF, na sigla em inglês), formado por grupos armados, que continua a encarar as tropas do governo. 

Aung San Suu Kyi e outros líderes importantes do LND foram detidos pelos militares. Em dezembro de 2022, Suu Kyi foi considerada culpada de corrupção, violação das leis eleitorais e segredos de Estado pelos tribunais da junta. Ela enfrenta uma sentença de 33 anos de prisão em 19 casos e está sendo mantida em confinamento solitário. Os apoiadores de Suu Kyi alegam que as acusações são politicamente motivadas.

A junta militar não fez nenhum anúncio oficial sobre as reuniões com Aung San Suu Kyi, e a RFA não conseguiu confirmar de forma independente se elas de fato aconteceram. Fontes próximas à equipe jurídica de Suu Kyi, incluindo membros do LND, afirmaram não ter conhecimento desses encontros.

As tentativas da RFA de entrar em contato com Naing Win, vice-diretor geral do Departamento de Prisões da junta, não receberam resposta até o momento desta declaração.

A RFA ouviu Kyaw Htwe, membro do Comitê Central de Trabalho do LND, que afirmou que o partido ouviu sobre os encontros dos generais com Suu Kyi na prisão, mas não pode confirmar a visita.

Htwe destacou a importância do papel de Suu Kyi no cenário político de Mianmar, afirmando que não haverá mudanças práticas sem ela. Ele também enfatizou que os militares “são responsáveis pelos problemas atuais do país, pois violaram a constituição ao tomar o poder”.

Ele enfatizou que a libertação de todos os presos políticos, incluindo Aung San Suu Kyi, é “crucial para uma possível resolução da situação”.

Nay Phone Latt, porta-voz do autodenominado Governo de Unidade Nacional (NUG, na sigla em inglês), que estabeleceu um regime paralelo para enfrentar os militares no poder desde o golpe, afirmou que não pode confirmar as visitas dos generais a Suu Kyi e destacou que é prematuro fazer qualquer comentário a respeito.

De acordo com Than Soe Naing, um analista político entrevistado pela RFA, envolver Suu Kyi no processo de paz entre a junta e a resistência armada iria contra suas posições e crenças. Ele afirmou que só poderia imaginar Suu Kyi aceitando tal oferta se a junta admitisse as irregularidades do golpe e restaurasse os resultados das eleições de 2020, onde o LND obteve uma vitória avassaladora.

Até o momento, a junta acusou o LND de fraude eleitoral, mas não apresentou evidências para sustentar essas alegações.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar. Inicialmente, o golpe foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu bastante com a derrubada. Mas o cenário mudou desde então.

O governo chinês frequentemente se coloca ao lado da junta ao vetar resoluções que condenam a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral. A posição ficou evidente mais uma vez em dezembro de 2022, embora a China tenha optado por não vetar a resolução.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Entretanto, há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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