Longe dos holofotes de Ucrânia e Gaza, conflito na Ásia é o mais violento do mundo

Três anos após sediar um golpe de Estado, Mianmar viu 50 mil vidas serem ceifadas no confronto entre os militares e milícias rebeldes

Três anos após o golpe de Estado em Mianmar, orquestrado por uma junta militar em 1º de fevereiro de 2021, o conflito já resultou na morte de cerca de 50 mil pessoas. Desde que a líder democrática Aung San Suu Kyi foi presa pelas forças birmanesas, que estabeleceram um regime autoritário, a nação do Sudeste Asiático tem sido devastada por uma guerra civil. As informações são da revista Newsweek.

O Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados (ACLED, da sigla em inglês), uma iniciativa que coleta e analisa dados sobre eventos de conflitos e localização geográfica em diversas áreas do mundo, afirma que a guerra civil de Mianmar, embora não acumule mais mortes, é campeã em violência devido à “intensidade prolongada” das hostilidades. A Síria vem em segundo lugar, e ambos superam em violência a Ucrânia, campeã em mortes, e a guerra em Gaza.

Em meio a essa atmosfera de caos social, a organização destaca centenas de pequenas milícias que surgiram para resistir ao sanguinário regime militar após o golpe que depôs a líder democrática. Em contrapartida, o Exército de Mianmar força cidadãos a se unirem a grupos pró-governo, oferecendo incentivos como dinheiro e arroz e ameaçando punir os que se recusam a lutar.

Batalhão de choque das forças birmanesas encerra protesto contra o golpe em Yangon, fevereiro de 2021 (Foto: WikiCommons)

Segundo o ACLED, a estimativa de mortes em Mianmar devido à violência nos últimos três anos é de pelo menos 47 mil, incluindo 8 mil civis. Mas esse número tende a ser até 12 mil maior, com outras duas mil mortes civis. Andrea Carboni, chefe de análise do projeto, destacou o aumento dos ataques militares e a expansão rebelde no final do ano como fatores contribuintes.

Os conflitos em Mianmar se intensificaram recentemente, com insurgentes ganhando terreno contra as forças lideradas pelo general Min Aung Hlaing, que governa o país e enfrenta sanções ocidentais, mas ainda assim obtém armas principalmente de Rússia e China. Também mantém acesso ao combustível de aviação sancionado, sustentando assim os bombardeios aéreos responsáveis pela maior parte das vítimas civis.

No ano passado, cerca de 1,6 mil civis morreram nos confrontos entre as Forças Armadas de Mianmar e os grupos rebeldes armados que lutam para depor a junta militar. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), os números são superiores aos de 2022 e estão diretamente ligados às recentes derrotas do regime, que tem tem reagido com mais violência aos revezes dos últimos meses.

O conflito entre rebeldes e militares ainda deslocou 2,3 milhões de pessoas.

Desinteresse global

O Google Trends, ferramenta que mostra o volume de buscas por termos específicos, revela um interesse significativamente menor por Mianmar em comparação com Gaza ou Ucrânia. As buscas mundiais para Ucrânia variaram de 83 a 100, para Gaza entre 30 e 46, enquanto para Mianmar foram praticamente zero.

Thinzar Shunlei Yi, da coalizão ACDD, uma aliança de grupos populares em Mianmar envolvida em advocacia e coordenação de esforços para abordar questões sociais e políticas no país, aponta que a junta em Mianmar está massacrando seu próprio povo diariamente, sem consequências. Ela critica a falta de atenção global para o conflito e destaca a hipocrisia de líderes como Xi Jinping, da China, e Vladimir Putin, da Rússia.

Os países ocidentais têm deixado em grande parte para a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) os esforços diplomáticos em relação a Mianmar. No entanto, a junta no poder tem menosprezado as tentativas da ASEAN de lidar com a crise.

Enquanto isso, o apoio dos EUA à guerra na Ucrânia e a Israel enfrenta pressões internas, com críticos questionando o custo e a conduta de Israel no ataque à Faixa de Gaza.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU. A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar, inclusive vetando resoluções que venham a condenar a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral, como no caso de dezembro de 2022.

Inicialmente, o golpe de Estado foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu financeiramente com a queda. Mas o cenário mudou rapidamente. Para não se distanciar da junta, Beijing classificou a prisão de Suu Kyi e de outros funcionários do governo como uma “remodelação de gabinete”, palavras usadas pela agência de notícias estatal Xinhua.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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