Entre 2000 e 2021, a China investiu US$ 1,34 trilhão em países em desenvolvimento. Foram financiados quase 21 mil projetos de infraestrutura em 165 nações de baixa e média renda, a maior parte inserida na Nova Rota da Seda (em inglês Belt and Road Initiative, ou BRI), iniciada em 2013. Ultimamente, porém, o foco mudou, e a prioridade agora é usar o dinheiro para resgatar parceiros que se endividaram devido à própria iniciativa chinesa. É o que aponta estudo divulgado nesta semana por pesquisadores do instituto AidData, da Universidade William and Mary, nos Estados Unidos.
“Beijing está desempenhando um papel desconhecido e desconfortável, como o maior cobrador oficial de dívidas do mundo”, diz o relatório. “55% dos seus empréstimos a países de baixa e média renda já entraram nos seus períodos de reembolso, e este número aumentará para 75% até 2030.”
O grande problema para os credores chineses é que muitos devedores estão insolventes ou sem liquidez, e as parcelas atrasadas já começaram a pipocar. A AidData calcula que “80% da carteira de empréstimos estrangeiros da China no mundo em desenvolvimento apoia atualmente países em dificuldades financeiras.”
Em parte, o problema pode ser explicado pela quantidade de projetos com significativa exposição a riscos ASG (ambientais, sociais ou de governança), o que invariavelmente atrasa a conclusão das obras ou impede que as instalações resultantes delas entrem em operação.
Em 2000, antes de a BRI ter entrado em cena, eram apenas 17 projetos nessas condições, avaliados em US$ 420 milhões. Em 2021, último ano abordado pelo estudo, eram 1.693, no valor de US$ 470 bilhões. A parcela de projetos com riscos ASG dentro da carteira chinesa em países em desenvolvimento aumentou de 12% para 53% nesse intervalo de 22 anos.
Isso não significa, porém, que a China feche os olhos para os riscos ASG. Ao contrário, 57% da carteira de projetos de infraestrutura da BRI em 2021 tinham fortes salvaguardas ambientais, sociais e de governança, uma grande mudança em relação ao descaso de outros tempos.
A maior cautela adotada nos últimos anos é compreensível, vez que 94 projetos em 49 países, totalizando US$ 56 bilhões, foram suspensos ou cancelados entre 2000 e 2021.
Precaução contra inadimplentes
A China vem agindo também para aumentar o gerenciamento de risco em suas parcerias dentro da BRI. “O objetivo estratégico de Beijing é garantir que seus maiores mutuários tenham dinheiro suficiente em mãos para pagar as dívidas pendentes de projetos de infraestrutura”, segundo o relatório.
Paralelamente, adota cláusulas cada vez mais rígidas para os casos de inadimplência, entre elas o aumento dos juros, cujo teto saltou de 3% entre 2014 e 2017 para 8,7% entre 2018 e 2021. Também aumenta consideravelmente o risco no refinanciamento das dívidas com os países inadimplentes, que assim correm o risco de entrar em um buraco ainda mais fundo.
A inadimplência que vem se acumulando nos últimos anos deu à BRI a péssima fama de que esconde uma “armadilha da dívida“. Assim, a aprovação da opinião pública em relação à China nos países em desenvolvimento caiu de 56% em 2019 para 40% em 2021. Paralelamente, a dos Estados Unidos, principais rivais no setor de investimento em megaprojetos, aumentou no período, atingindo 54%.
Se a opinião pública vê Beijing com desconfiança crescente, o mesmo não vale para os governos. “Em todos os votos da Assembleia Geral da ONU entre 2000 e 2021, os governos dos países de baixa e média renda alinharam suas posições de política externa com a da China em 75% das vezes, em comparação com 23% com os EUA”, avalia o estudo
A retribuição é financeira, e aqueles que manifestam votos favoráveis recebem em média um aumento de 276% na ajuda e no crédito. Tanto que o investimento chinês nos países em desenvolvimento segue elevado mesmo sob desconfiança, e atualmente está na casa dos US$ 80 bilhões anuais, contra US$ 60 bilhões dos Estados Unidos.
O relatório conclui que a BRI mudou bastante, partindo de uma versão 1.0 para outra 2.0, mais moderna e segura. E isso aparentemente vem sendo ignorado pelo Ocidente, que parece “não ter uma boa compreensão de como a China está recalibrando suas práticas de concessão de empréstimos e subvenções em resposta às mudanças nas condições no terreno.”
Hoje, a melhor estratégia para os Estados Unidos e seus aliados do G7 competirem com Beijing é apostar justamente nos países onde a desconfiança em relação aos chineses é maior. A BRI cada vez mais tem se distanciado desse tipo de parceiros, deixando assim a porta aberta para a concorrência entrar.
“No entanto, fazê-lo exigiria que o G7 agisse rapidamente quando estas janelas de oportunidades surgirem e adaptasse a sua programação para dar resposta às necessidades não satisfeitas dos países parceiros”, conclui o documento.