O mundo vive atualmente uma corrida armamentista escancarada que tem os arsenais nucleares como protagonistas, algo que que não se viu nem durante a Guerra Fria. O alerta foi feito por Rafael Mariano Grossi, diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), em entrevista ao jornal Financial Times.
“Não creio que na década de 1990 você ouviria países importantes dizendo: ‘Bem, por que não temos armas nucleares também?’”, disse ele. “Esses países estão tendo uma discussão pública sobre isso, o que não era o caso antes. Eles estão dizendo isso publicamente. Eles estão dizendo isso para a imprensa. Chefes de Estado se referiram à possibilidade de repensar essa coisa toda.”
Nenhum país ilustra melhor a afirmação de Grossi que a China. Segundo levantamento divulgado em janeiro pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês), Beijing tinha cerca de 500 ogivas nucleares no primeiro mês deste ano, um aumento em relação às 410 de janeiro de 2023.
O país asiático está em um processo intenso de ampliação de seu arsenal na tentativa de se aproximar de EUA e Rússia, que possuem mais de cinco mil ogivas cada. Nessa toada, o número de mísseis balísticos intercontinentais da China, atualmente cerca de 238, pode superar os 800 dos norte-americanos e os 1.244 dos russos na próxima década.
Principal aliada chinesa, a Rússia trata a questão ainda mais abertamente, fazendo todo barulho possível ao lembrar o mundo de que tem o maior arsenal global do gênero. Nos últimos meses, o país admitiu a possibilidade de flexibilizar sua doutrina nuclear e realizou exercícios militares com armas táticas, algo incomum.
Tais exercícios não são raros, mas geralmente envolvem as armas nucleares estratégicas, aquelas com alto poder de destruição, como as que os EUA usaram contra Hiroshima e Nagasaki em 1945. Entretanto, nas recentes manobras, Moscou usou armas nucleares táticas, menos poderosas e voltadas a neutralizar posições inimigas, sinal de que Moscou cogita empregá-las na guerra da Ucrânia.
Para não se prender a regras muito rígidas caso entenda necessário usar seu arsenal de destruição em massa, o presidente Vladimir Putin sugeriu em junho, no Fórum Internacional Econômico de São Petesburgo, que a doutrina nuclear do país está sujeita a alterações, atreladas à pressão que Moscou alega sofrer do Ocidente.
O Irã, que ainda não tem armas de destruição em massa, é outra preocupação, conforme aumenta o enriquecimento de urânio e se aproxima de sua primeira bomba atômica. Relatório divulgado pela AIEA no início do ano afirma que Teerã produziu, entre o final de outubro de 2023 e o início de fevereiro de 2024, 25 quilogramas de urânio com pureza de grau quase militar, 60%. Um aumento significativo em relação aos menos de sete quilogramas produzidos no trimestre anterior.
A movimentação de seus rivais levou os EUA a abrirem mão da moderação. Conforme se afunila a corrida pela presidência do país, com a eleição agendada para novembro, Robert C. O’Brien, ex-assessor de segurança nacional do ex-presidente Donald Trump, instou o candidato a conduzir novos testes nucleares se for reeleito. De acordo com a revista Foreing Policy, argumentou que é preciso “manter a superioridade técnica e numérica sobre os arsenais nucleares combinados de China e Rússia”.
Mesmo a França chegou a usar suas armas de destruição em massa como ferramenta de dissuasão. Em abril, o presidente Emmanuel Macron ofereceu o arsenal nuclear do país para fortalecer as defesas europeias ante à ameaça russa.
Wilfred Wan, diretor do Programa de Armas de Destruição em Massa do Sipri, fez em março um alerta semelhante ao de Grossi. “Não víamos armas nucleares desempenharem papel tão proeminente nas relações internacionais desde a Guerra Fria”, disse ele em junho. “É difícil acreditar que apenas dois anos se passaram desde que os líderes dos cinco maiores Estados com armas nucleares reafirmaram conjuntamente que ‘uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada’.”