Civis ucranianos armaram operação secreta para impedir que bebês fossem levados para a Rússia

Tropas de Moscou são suspeitas de raptar bebês ucranianos órfãos e levá-los para que sejam criados como se fossem crianças russas

Desde os primeiros dias de guerra na Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro, civis ucranianos organizaram operações secretas para impedir que bebês órfãos fossem levados pelas tropas de Moscou para serem criados como crianças russas. Episódios assim, até então desconhecidos, somente agora foram revelados por uma reportagem da agência Associated Press (AP).

Desde o início da guerra, as tropas de ocupação são acusadas de levar para a Rússia não apenas órfãos, mas também crianças russas separadas dos pais. Prevendo esse tipo de crime, a equipe de um hospital infantil em Kherson decidiu alterar os registros médicos dos órfãos para dar a ideia de que tinham a saúde muito frágil para realizar uma viagem longa.

“Escrevemos deliberadamente informações falsas de que as crianças estavam doentes e não podiam ser transportadas”, disse a Dra. Olga Pilyarska, chefe dos cuidados intensivos do hospital. “Estávamos com medo que (os russos) descobrissem. Mas decidimos que salvaríamos as crianças a qualquer custo”.

Já em um centro de reabilitação social e psicológica nas proximidades de Kherson, documentos foram falsificados para esconder 52 crianças. Algumas foram entregues aos cuidados de funcionárias, outra levadas para parentes distantes. Somente as mais velhas permaneceram no local.

Mães ucranianas com bebês de colo em porão de maternidade de Shostka (Foto: Aleksey Filippov/Unicef)

“Parecia que se eu não escondesse meus filhos, eles simplesmente seriam tirados de mim”, declarou Volodymyr Sahaidak, diretor da instituição. Para conseguir transportar as crianças, ele conta que também falsificou registros médicos para driblar a fiscalização russa durante o trajeto.

Entretanto, nem todas as crianças de Kherson tiveram a mesma sorte. Ao menos 50 menores, inclusive bebês, foram evacuados de um orfanato em outubro e levadas para a Crimeia, anexada pela Rússia em 2014. Segundo uma moradora, foram foi usado um ônibus pintado com a letra Z, símbolo russo da guerra.

Campanha de despovoamento

Em seu mais recente relatório, divulgado no dia 26 de novembro, o think tank Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, da sigla em inglês), sediado nos EUA, relatou que autoridades russas continuam os esforços para deportar crianças ucranianas, no que seria uma “campanha de despovoamento deliberada” nos territórios ocupados.

Sob o pretexto de reabilitação médica, 15 mil crianças teriam passado por exames coordenados pelos russos, sendo que 70% delas foram informadas de que necessitam de “cuidados médicos especiais” e precisam ser realocadas para a Rússia para tratamento.

Com a deportação, as autoridades russas esperam que as famílias das crianças viajem para a Rússia para buscar os filhos após tratamento médico. Porém, ao término dos atendimentos, ficam impedidas de voltar para casa, sendo forçadas a permanecer em território russo. 

Moscou, porém, alega que as crianças são levadas para a Rússia ou para regiões ocupadas para “protegê-las das hostilidades“. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, as autoridades também buscam parentes de crianças órfãs deixadas na Ucrânia para posteriormente enviar os menores aos familiares.

Em 11 de outubro, Kiev anunciou o retorno ao país de 37 crianças supostamente levadas à força para a Rússia desde o início da guerra. De acordo com o governo, todas têm familiares, mas ainda assim foram removidas à força da região de Kharkiv e levadas à cidade russa de Kabardinka, no sul do país. Agora, retornaram à Ucrânia e receberam abrigo em centros para deslocados na região de Zakarpattia.

Denúncia antiga

A ONU (Organização das Nações Unidas) disse no início de setembro ter constatado que menores ucranianos foram levados à força para a Rússia, desacompanhados e sem a realização de qualquer procedimento legal. A denúncia já vinha sendo feita há meses por governos estrangeiros e entidades humanitárias.

Na ocasião, Ilze Brands Kehris, secretária-geral adjunta para direitos humano, destacou que os menores vinham sendo enviados “desacompanhados aos territórios ocupados pela Rússia ou à própria Federação Russa”.

“Estamos preocupados que as autoridades russas tenham adotado um procedimento simplificado para conceder a cidadania russa a crianças sem cuidados parentais e que essas crianças sejam elegíveis para adoção por famílias russas”, afirmou ela.

Dados divulgados em setembro por Washington, que analisou inclusive estatísticas fornecidas por Moscou, estimam que entre 900 mil e 1,6 milhão de ucranianos já foram detidos e deportados à força ao longo da guerra, que teve início no dia 24 de fevereiro. Tais ações podem configurar crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou genocídio.

Já a embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, disse que mais de 1,8 mil crianças foram transferidas para a Rússia somente em julho. “Algumas crianças foram separadas de suas famílias e levadas de orfanatos antes de serem colocadas para adoção na Rússia”, afirmou ela.

O embaixador russo na ONU, Asily Nebenzyaem, classificou a acusação como “infundada” e disse que esta é uma tentativa do Ocidente de manchar a reputação do país dele. “Até onde podemos julgar, procedimentos semelhantes são aplicados na Polônia e em outros países da União Europeia (UE) contra refugiados ucranianos”, disse.

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