Com reproduções fajutas de sistema de artilharia, Kiev leva Rússia a desperdiçar seus caros mísseis

Cópias do Himars geralmente feitas de madeira são posicionadas no campo de batalhas e enganam as forças armadas de Moscou

As forças armadas da Ucrânia adotaram uma inteligente e peculiar estratégia para enganar as tropas russas e forçá-las a desperdiçar seus caros mísseis de cruzeiro de longo alcance. A ideia consiste em posicionar no campo de batalhas reproduções fajutas do Sistema de Artilharia de Foguetes de Alta Mobilidade (Himars, na sigla em inglês), armamento que os EUA repassaram a Kiev em junho e desde então tem sido o protagonista do arsenal ucraniano. As informações são do jornal The Washington Post.

Feitas de madeira, as iscas geralmente são confundidas com armamento real pelos drones russos que transmitem a localização às equipes de artilharia. Autoridades ucranianas confirmam a estratégia e afirmam que ao menos dez mísseis Kalibr russos foram desperdiçados nesses alvos de mentira. O sucesso da estratégia, inclusive, levou Kiev a aumentar a produção dos falsos Himars.

Tal estratégia de Kiev pode ajudar a explicar as estatísticas exageradas de Moscou sobre a quantidade de armamento ocidental que seus mísseis destruíram até agora. Em particular os Himars, que se tornaram um grande problema para os russos. “Eles (Rússia) alegaram ter atingido mais Himars do que enviamos”, afirmou um diplomata norte-americano.

Sistema de Artilharia de Foguetes de Alta Mobilidade (Himars) em ação (Foto: Wikimedia Commons)
Grandes perdas

Capaz de atingir alvos a até 70 quilômetros de distância, o lançador de foguetes pode ser posicionado fora do alcance da artilharia russa, graças à mobilidade do armamento, e ainda assim causar danos aos quais à Rússia não estava habituada. Os EUA forneceram 16 unidades desse armamento à Ucrânia, que ainda recebeu de outras nações ocidentais o sistema de foguetes M270, que é semelhante.

“Os sistemas de defesa aérea russos acabaram sendo ineficazes contra ataques maciços de mísseis Himars“, disse em julho Igor Girkin, ex-comandante das forças separatistas no leste da Ucrânia, que se manifestou sobre a questão no aplicativo de mensagens Telegram. Segundo ele, graças a essa arma, as tropas russas sofreram “grandes perdas de homens e equipamentos”.

Entre os alvos preferenciais da Ucrânia estão depósitos de munição e postos de comando das forças armadas. “Mísseis e artilharia ucranianos atingiram centros de tomada de decisão várias vezes. Com resultados. Os centros são pequenos, mas importantes”, afirmou Alexander Sladkov, correspondente de guerra da emissora estatal Rossia 1.

Os danos causados pelo Himars levaram o ministro da Defesa Sergei Shoigu a ordenar que seus generais priorizassem tais alvos em seus ataques de longa distância. Moscou também passou a relatar um sucesso cada vez maior de sua artilharia contra o armamento norte-americano, o que gerou contestação por parte de Washington.

“Se os russos pensarem que atingiram um Himars, eles alegarão que atingiram um Himars”, disse George Barros, pesquisador militar do think tank Instituto para o Estudo da Guerra, de Washington. “As forças russas podem muito bem estar exagerando suas avaliações de danos de batalha depois de atingir os chamarizes Himars”.

Com o tempo, o desperdício de mísseis pode se tornar um problema para Moscou. Isso porque autoridades do setor de Defesa norte-americano afirmam que o estoque de mísseis guiados de precisão está no fim, e as sanções ocidentais impostas à exportação de microchips tendem a dificultar consideravelmente a produção de novas unidades.

Mortos e feridos

As baixas entre os soldados são outro problema com o qual Moscou não tem conseguido lidar. Os números reais são incertos, pois o país não divulga dados oficiais. Entretanto, no dia 8 de agosto, os EUA apresentaram uma estimativa, sugerindo que entre 70 mil e 80 mil soldados russos foram mortos ou feridos. Alguns dias antes, em 20 de julho, William Burns, diretor da CIA (Agência Central de Inteligência), afirmou que 15 mil soldados russos haviam morrido na guerra até então.

A fim de contornar o problema, o presidente Vladimir Putin determinou em agosto o aumento legal do efetivo de suas forças armadas. Um decreto assinado por ele criou 137 mil novos postos militares, aumentando em 10% o número de combatentes ativos e atingindo assim um efetivo de 1,15 milhão. Não haverá aumento nas vagas destinadas a civis, que completam o quadro das forças armadas. Atualmente, há 1,9 milhão de postos, entre civis e militares. Com o novo recrutamento, que entra em vigor no dia 1º de janeiro de 2023, serão cerca de 2,05 milhões.

Enquanto o decreto não entra em vigor, a Rússia tem recorrido a alternativas emergenciais para ampliar seu efetivo na Ucrânia. Uma delas é enviar ao campo de batalha soldados com pouco treinamento militar, uma prática que coloca a vida deles em risco e compromete o rendimento geral das tropas, segundo especialistas.

Soldados do exército russo em treinamento: falta de mão de obra (Foto: eng.mil.ru)

Soldados que participaram do conflito confirmaram ter passado por um treinamento curto, com duração entre cinco e dez dias. Uma prática que contraria o Ministério da Defesa da Rússia, segundo o qual uma preparação de quatro semanas é necessária para considerar o soldado apto. 

O ministério descreve a rotina de preparação e deixa claro o prazo: “Em quatro semanas, são realizadas aulas práticas (até 240 horas), aulas em simuladores (até 10 horas), treinamento físico (até 36 horas), treinamento tático (até 32 horas), treinamento especial (até 50 horas), exercícios de tiro AK-74 (9 vezes e 200 rodadas) e lançamento de granadas (7 vezes)”.

O analista militar independente Pavel Luzin avalia como inadequada a preparação reduzida. “Uma semana [de treinamento] não é nada. Para um soldado, é um caminho direto para um hospital ou um saco para cadáveres”, afirmou.

Samuel Cranny-Evans, analista militar do think tank Royal United Services Institute, em Londres, diz que não é apenas o treinamento de combate que faz falta: “Há muito a aprender em termos de coordenação e cooperação com uma equipe. E é bastante demorado”.

A situação é ainda mais delicada no caso dos conscritos, soldados recrutados pelo governo e enviados ao campo de batalha mesmo contra a própria vontade. Nessas situações, o envio à guerra só é permitido pela legislação russa após quatro meses de serviço militar.

Desde o início do conflito, Moscou afirma que apenas soldados profissionais fazem parte do que o governo classifica como “operação militar especial“. Em março, porém, o Ministério da Defesa admitiu que alguns conscritos foram enviados por engano, mas já teriam sido levados de volta à Rússia. Inclusive, houve a promessa de punições aos oficiais que os enviaram à guerra.

Até presidiários tornaram-se uma opção para as forças armadas. A ONG de direitos humanos Gulagu.net, que monitora o sistema carcerário do país, diz que detentos têm sido convocados para a guerra pela FSB (Agência de Segurança Federal, da sigla em inglês) e pelo Wagner Group, uma organização paramilitar que serve aos interesses do Kremlin e esta ativa na Ucrânia. Os centros de recrutamento seriam colônias penais das regiões de São Petesburgo, Tver, Ryazan, Smolensk, Rostov, Voronezh e Lipetsk.

De acordo com Vladimir Osechkin, chefe da ONG, o recrutamento nas prisões chegou a ser feito pessoalmente por Yevgeny Prigozhin, principal financiador do Wagner Group e importante aliado de Putin. Ele foi a algumas unidades prisionais oferecer o perdão presidencial em troca dos serviços no campo de batalhas na Ucrânia. Um preso que presenciou o recrutamento afirmou que condenados por homicídio premeditado e roubo são especialmente bem-vindos, nas palavras do recrutador.

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