Denunciante diz que governo russo sabia de abusos em presídios e não fez nada

Sergei Savelyev acusa duas agências de ignorarem a violência cometida contra presos, exposta em vídeos que ele contrabandeou de um presídio

O belarusso Sergei Savelyev, que usou vídeos contrabandeados de dentro de um presídio para denunciar a violência dos agentes carcerários na Rússia, afirmou na última terça-feira (28) que inúmeros oficiais de agências estatais russas tinham consciência do que ocorria e não tomaram nenhuma atitude contra a brutalidade. As informações são da rede Radio Free Europe.

“Um grande número de órgãos do Estado apoia e ‘protege’ [os abusos], cria um escudo em torno deste canalizador de tortura, contanto que continue a funcionar”, disse ele em entrevista concedida da França, onde busca asilo político desde que fugiu da Rússia, em outubro de 2021. Ele cita especificamente a FSB (Agência Nacional de Segurança, da sigla em inglês) e o FSIN (Serviço Prisional Federal, da sigla em russo).

A violência, de acordo com o belarusso, costuma ser praticada para chantagear os presos ou para punir o descumprimento de alguma regra. Também ocorrem casos extremos, em que os presos são abusados para que prestem um testemunho conveniente às autoridades, seja incriminando eles próprios ou outra pessoa.

A chantagem através da violência costuma ajudar os agentes penitenciários a controlarem os presos mais perigosos, capazes de influenciar todos os demais detentos. “Esta hierarquia prisional é ativamente usada pelos próprios oficiais do FSIN e da FSB”, diz Savelyev, que cumpriu pena por tráfico de drogas no presídio de Saratov, entre 2015 e 2021.

Sergei Savelyev vazou os vídeos que mostram abusos diversos contra detentos em prisões russas (Foto: reprodução/Gulagu.net)

O belarusso, ele próprio vítima de violência carcerária, diz que resolveu contrabandear os vídeos na tentativa de dar fim aos abusos. “Se uma pessoa observa o sofrimento de outras pessoas dia após dia e vê que todos pensam que isso é normal, ela tem apenas dois caminhos: pode aceitar isso e se tornar parte desta máquina ou pode tentar fazer algo a respeito e de alguma forma mudá-lo. Escolhi o segundo caminho”, disse.

Após realizar as denúncias, Savelyev diz que passou a temer por sua vida, por isso resolveu fugir da Rússia. E a fuga não foi simples, segundo ele. A viagem durou três semanas, partindo da cidade siberiana de Novosibirsk para Moscou, depois para Minsk, em Belarus, e então para a Turquia, antes de chegar à França em 16 de outubro. Mesmo em solo francês ele se diz apreensivo: “Estou ciente de que a ameaça de minha eliminação física não acabou. Ela permanece. Mas tomamos uma série de medidas para torná-la inútil”.

Novas revelações

No mesmo dia em que a entrevista de Savelyev foi divulgada, surgiram novas denúncias de abusos nas prisões russas. Marsel Amirov, que cumpre pena de 14 anos por homicídio, alega sofrer represálias dentro da cadeia desde de denunciou ter sido torturado, estuprado e humilhado por agentes carcerários. Ele iniciou uma greve de fome para protestar, segundo o advogado e parentes dele.

As denúncias de Amirov foram feitas em novembro, a um órgão de fiscalização sancionado pelo governo para apurar abusos de direitos humanos na prisão. Após relatar os abusos que sofria na prisão de Kirov, cerca de mil quilômetros a leste de Moscou, ele chegou a passar 11 dias em uma prisão hospitalar. Mas depois retornou a Kirov e voltou a sofrer abusos, dessa vez para que concordasse em mudar o depoimento anterior.

No dia 23 de dezembro, Amirov recebeu a advogada Tatyana Shabanova e forneceu a ela uma declaração por escrito documentando os abusos. “No início, quando o vi, ele parecia um animal ferido”, disse a defensora. “Ele olhou em volta, estremeceu, tinha medo de tudo, seus olhos estavam assombrados. Mas, depois de perceber que não estava sendo colocado [em perigo], ele se acalmou um pouco”.

Ate hoje, as denúncias de Savelyev e Amirov levaram a poucas mudanças práticas. Em novembro, Anton Yefarkin, chefe do serviço penitenciário da região de Saratov, onde o belarusso cumpriu pena e de onde contrabandeou os vídeos, afirmou que 18 funcionários foram demitidos e 11 enfrentaram medidas disciplinares “rígidas”.

Na última terça (28), o governo russo anunciou a demissão de Anatoly Yakunin, vice-diretor do FSIN. Segundo a ONG Gulagu.net, que publicou os vídeos de Savelyev, foi a própria FSB quem recomendou a demissão. Antes, o general da FSB Aleksandr Kalashnikov havia sido exonerado do cargo de diretor do FSIN, sendo o mais alto oficial punido no caso.

Entenda o caso

Savelyev é um profissional de TI (tecnologia da informação) e ex-presidiário colocado em liberdade em fevereiro deste ano. Ele enviou à ONG Gulagu.net mais de mil vídeos que mostram prisioneiros sendo espancados e torturados por agentes da FSB (Agência Nacional de Segurança, da sigla em inglês) e do Serviço Prisional Federal (FSIN, da sigla em russo), encontrados quando ele trabalhava com manutenção de computadores na cadeia.

Durante suas atividades, Savelyev teve acesso ao servidor interno da prisão onde estava e também de outras. O material foi salvo em pen drives, que ficaram escondidos enquanto ele cumpria pena. No dia de sua libertação, durante uma revista minuciosa, ele pegou os dispositivos de memória sem ser visto pelos guardas e os levou quando finalmente deixou o presídio.

Segundo a ONG, entre 2018 e 2020, ao menos 200 detentos teriam sido vítimas de tortura e estupro, sendo que as imagens mostram 40 casos. Um dos principais centros de tortura é a Colônia Penal 15, em Angarsk, perto da Mongólia. Lá, os agentes carcerários empreenderam uma campanha de violência desde uma rebelião que ocorreu em abril de 2020, organizada pelos presos justamente em virtude de uma agressão contra um detento.

Por que isso importa?

O sistema carcerário russo ganhou atenção global devido a denúncias de Alexei Navalny, o principal opositor do presidente Vladimir Putin. O oposicionista está preso desde fevereiro deste ano em uma colônia penal de alta segurança, a IK-2, 100 quilômetros a leste de Moscou.

Navalny, detido por ter liderado manifestações não autorizadas contra o Kremlin, chegou a fazer uma greve de fome de 23 dias em abril. Na ocasião, ele protestava contra a falta de atendimento médico e contra o que classificou como “tortura” por privação de sono, alegando que um guarda o acordava de hora em hora durante a noite.

Em agosto, a Justiça russa abriu uma segunda acusação criminal contra Navalny, o que pode ampliar a sentença de prisão em três anos. A acusação: “incentivar cidadãos a cometerem atos ilegais”, por meio da Fundação Anticorrupção (FBK) que ele criou. Mais recentemente, uma terceira acusação, de “extremismo”, pode estender o encarceramento por até uma década.

Caso seja condenado em alguma das novas acusações, Navalny será mantido sob custódia no mínimo até o fim da próxima eleição presidencial, em 2024, quando chega ao fim o atual mandato de seis anos de Putin no Kremlin.

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