Moscou retirou 700 mil crianças da Ucrânia e as levou para a Rússia, admite parlamentar russo

Grigory Karasin diz que menores fogem de "bombardeios" e "áreas de conflito". Ação pode constituir genocídio com base no direito internacional

Desde que a guerra da Ucrânia teve início, em 24 de fevereiro de 2022, aproximadamente 700 mil crianças ucranianas foram retiradas de áreas de conflito e levadas para a Rússia ou para territórios ocupados pelas forças russas. A informação foi divulgada no domingo (2) por Grigory Karasin, chefe da câmara alta do parlamento de Moscou.

Em seu canal no Telegram, Karasin deu a entender que Moscou agiu para proteger as criança dos riscos da guerra. “Nos últimos anos, 700 mil crianças encontraram refúgio conosco, fugindo dos bombardeios e das áreas de conflito na Ucrânia”, disse ele, segundo a agência Reuters.

O argumento de proteger as crianças da guerra é o mesmo que já vinha sendo usado pela Rússia para justificar a abdução de menores de idade denunciada por governos estrangeiros e órgãos internacionais. A admissão de Karasin, portanto, não é novidade. O que espanta são os números, bem superiores às estimativas anteriores.

Iuliia Mendel, porta-voz do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, tocou nesse ponto ao comentar a informação no Twitter. “É assustador como eles brincam com números. Mais cedo, Moscou estava falando sobre 300 mil crianças ucranianas roubadas. A Ucrânia identificou cerca de 20 mil delas e devolveu apenas 300”, disse ela.

Kiev contesta os argumentos russos e alega que as crianças são levadas mesmo contra a própria vontade e a de seus familiares, com quem então perdem contato. O TPI investiga tais ações como crimes de guerra, que “teriam sido cometidos em território ucraniano ocupado pelo menos desde 24 de fevereiro de 2022”, data da invasão russa.

Foram as abduções de menores que levaram o Tribunal Penal Internacional (TPI) a emitir, em março deste ano, mandados de prisão contra o presidente russo Vladimir Putin e a Comissária para os Direitos da Criança do gabinete dele, Maria Alekseyevna Lvova-Belova.

“É proibido, pela lei internacional, que forças ocupantes transfiram civis dos territórios em que vivem para outros territórios”, disse Piotr Hofmanski, presidente do TPI, por ocasião da emissão dos mandados de prisão. “Crianças desfrutam de especial proteção sob a Convenção de Genebra”, acrescentou.

Criança aguarda ônibus de evacuação na cidade ucraniana de Zhytomyr (Foto: reprodução/Facebook)
Campos de reeducação

Em fevereiro deste ano, um estudo do Laboratório de Pesquisa Humanitária (HRL) da Universidade de Yale, nos EUA, destacou a existência de campos de reeducação para acomodar os menores, algo que Moscou não admite abertamente. O documento apontou que ao menos seis mil crianças ucranianas vinham sendo mantidas à época nessas instalações, espalhadas por regiões da Ucrânia e da Rússia.

Segundo o estudo, há indícios de que as crianças passam por um processo de reeducação pró-Rússia, com a aplicação inclusive de treinamento militar, e são muitas vezes impedidas de retornar ao convívio dos familiares. Foram identificadas 43 instalações usadas por Moscou para abrigar os jovens ucranianos, cujas idades variam entre quatro meses e 17 anos.

Embora o Laboratório tenha conseguido identificar seis mil crianças e 43 instalações, o estudo já dizia que os números reais tendem a ser “significativamente” maiores em ambos os casos. A maioria dos campos listados por Yale está na Crimeia, região ucraniana ocupada pela Rússia desde 2014. Mas alguns deles ficam em território russo, como as cidades de Moscou, Kazan e Ecaterimburgo.

Crime de guerra e genocídio

A deportação em massa forçada de pessoas durante um conflito é classificada pelo Direito Internacional Humanitário como um crime de guerra. A “transferência forçada de crianças”, particularmente, configura um ato genocida. No caso da guerra da Ucrânia, tais denúncias surgiram ainda nos primeiros dias de combate, e desde então vêm aumentando.

Em junho de 2022, menos de quatro meses após a invasão russa, a então alta comissária da ONU (Organização das Nações Unidas) para os direitos humanos, Michelle Bachelet, disse que seu escritório vinha investigando tais alegações. Ela destacou a suspeita de que crianças ucranianas órfãs vinham sendo adotadas por famílias russas sem o devido procedimento legal e citou relatos de que a Rússia estava “modificando a legislação existente para facilitar o andamento das adoções” em Donbass. 

Em fevereiro deste ano, o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, usou a palavra “genocídio” para definir a abdução de crianças ucranianas durante a guerra. Ele se manifestou em mensagem de vídeo exibida em sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

“O crime mais assustador é que a Rússia rouba crianças ucranianas”, disse Kuleba no evento realizado em Genebra, na Suíça, acrescentando que tais ações constituem “provavelmente a maior deportação forçada da história moderna”. E sentenciou: “Este é um crime genocida.”

A denúncia foi reforçada por Annalena Baerbock, ministra das Relações Exteriores da Alemanha. “O que poderia ser mais desprezível do que tirar as crianças de suas casas, longe de seus amigos, de seus entes queridos?”, questionou ela na mesma sessão do Conselho.

A chefe da diplomacia alemã citou o caso de 15 crianças que teriam sido levadas de Kherson ainda no início da guerra, sendo que a mais jovem tinha nove anos à época. “Não vamos descansar até que todas essas crianças estejam em casa”, afirmou a ministra. “Porque os direitos das crianças são direitos humanos, e os direitos humanos são universais”.

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