Rússia não poupa esforços para ter de volta seus espiões, mas larga à própria sorte os estrangeiros recrutados

Agentes russos em países estrangeiros ganham suporte diplomático e logístico para fugir, deixando aos agentes duplos a missão de encarar a Justiça

O STF (Superior Tribunal Federal) é atualmente palco de uma batalha judicial envolvendo a Rússia, que usa um mandado de prisão como argumento para pedir a extradição de Sergey Vladimirovich Cherkasov. O Judiciário brasileiro resiste à pressão de Moscou e argumenta que o indivíduo, suspeito de ser um espião, responde a processo criminal no Brasil e seguirá por aqui ao menos até o fim dos trâmites. O caso ilustra não apenas o alcance da inteligência russa, mas também a cautela do Kremlin para evitar que seus agentes sejam expostos. Para tanto, eles recebem apoio diplomático e logístico mundo afora, um suporte que não se estende aos muitos agentes duplos desmascarados nos últimos anos. Estes acabam ignorados pelo governo russo e não raramente precisam enfrentar sozinhos a Justiça de seus próprios países.

A Europa tem sido particularmente afetada pela ação dos espiões russos. Nos últimos anos, centenas de supostos diplomatas a serviço de Moscou foram expulsos por países do continente sob a justificativa de que eram, na verdade, agentes de inteligência protegidos pelo manto da diplomacia. Paralelamente, não param de surgir casos de autoridades locais acusadas de colaborar com Moscou, um problema que parece afetar especialmente as nações bálticas e a Alemanha.

No final de março, promotores de Justiça alemães formalizaram a acusação contra uma autoridade militar local por tentar passar informações secretas à inteligência russa. Identificado apenas como Thomas H., o indivíduo está preso desde agosto.

Vladimir Putin: servir ao presidente da Rússia nem sempre é bom negócio Foto: WikiCommons)

Casos assim são quase rotineiros na Alemanha. Em janeiro do ano passado, um homem identificado como Arthur E. foi acusado de passar informações à inteligência russa, segundo a rede BBC. Antes disso, em outubro de 2022, o Ministério do Interior alemão anunciou a demissão de Arne Schoenbohm, chefe do Departamento Federal de Segurança da Informação, devido à proximidade dele com a Rússia, embora não tenha sido acusado de espionagem.

Schoenbohm, além de perder o emprego, vem sendo investigado, e um processo judicial contra ele não está descartado. Já Thomas H. e Arthur E. enfrentam a Justiça local, e casos de traição como estes podem render penas que se aproximam dos dez anos de prisão. Terão, porém, que lutar pela liberdade por seus próprios meios, vez que Moscou, ao menos publicamente, não oferece qualquer suporte eles. Sequer se manifestou sobre cada caso para negar os relacionamentos.

Casos semelhantes foram registrados nos países bálticos, onde a inteligência de Moscou marca forte presença, muitas vezes cooptando importantes autoridades estatais. Na Estônia, Hermann Simm, ex-chefe do Departamento de Segurança do Ministério da Defesa, foi condenado por espionagem a favor da Rússia, mesmo destino de Raivo Susi, um empresário do setor de aviação julgado e sentenciado.

Na Letônia, quem tem agora que se entender com o Judiciário após servir ao governo russo é Tatjana Zdanoka, membro do Parlamento Europeu representando Riga. Um caso semelhante ao do ex-ministro do Interior Janis Adamsons, condenado em novembro de 2023 a oito anos de prisão por espionagem. Mais uma vez, do lado da Rússia, apenas silêncio.

A indiferença em relação aos agentes duplos contrasta com o tratamento destinado aos espiões de origem russa. O Kremlin não chega a se pronunciar publicamente sobre o fato de que seus agentes foram desmascarados, respeitando assim a cartilha da boa espionagem. Embora discreto com as palavras, o governo do presidente Vladimir Putin não economiza nas ações.

Quando Cherkasov foi preso no aeroporto de Guarulhos, em abril de 2022, usando a falsa identidade de Victor Muller Ferreira, o então advogado dele entrou com pedido de habeas corpus para tentar libertá-lo. Fez, ainda, um solicitação incomum, para que o acusado fosse transferido das instalações da Polícia Federal (PF) para o Consulado da Rússia. Ali ficaria detido mediante a promessa de comparecer aos procedimentos legais estabelecidos, sob argumento de que havia contra ele um mandado de prisão pendente também na Rússia.

A situação lembra a do empresário russo Artem Uss, preso em outubro de 2022 na Itália a pedido da Justiça norte-americana. Na ocasião, um tribunal de Moscou emitiu contra o russo um mandado de prisão que mais tarde mostrou-se fajuto. A medida visava a impedir a extradição para os EUA recém-aprovada por uma corte de Milão. Mais tarde, Uss fugiu das autoridades italianas, possivelmente com apoio da inteligência russa, e atualmente acredita-se que esteja seguro em seu país natal.

Outros notórios agentes russos devidamente identificados não precisaram de suporte diplomático ou logístico para fugir. Alexander Mishkin e Anatoly Chepiga, acusados de envenenar o agente duplo Sergei Skripal e a filha dele, Yulia, em maio de 2018, na Inglaterra, conseguiram deixar o país depois do crime. Moscou jamais admitiu ligação com o caso, mas mostrou consideração por seus agentes promovendo-os a  “representantes do Kremlin” em diferentes regiões da Rússia.

Antes mesmo dos envenenamentos, em 2014, Putin já os havia condecorado com o prêmio “Heróis da Rússia”, o mais importante do país, por suas atuações em uma operação secreta na República Tcheca e na Bulgária. Em seguida, teriam recebido apartamentos em áreas nobres de Moscou.

A relação de ambos com o Kremlin é notória. Registros telefônicos indicam que os agentes mantinham contato frequente com o gabinete do ministro das Relações Exteriores Sergei Lavrov, tanto antes quanto depois do ataque a Skripal. Um sinal de que Putin os tem em alta conta, bem diferente da indiferença dedicada aos muitos agentes estrangeiros largados à própria sorte após servirem ao presidente russo.

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