A Rússia utilizou o avião presidencial e fundos estatais em um programa de retirada de crianças de territórios ucranianos ocupados, com o objetivo de realocá-las para famílias russas e assim apagar suas identidades ucranianas. Essa é a conclusão de um relatório da Escola de Saúde Pública de Yale, cujas informações foram reproduzidas pela agência Reuters.
A pesquisa, financiada pelo Departamento de Estado norte-americano, identificou 314 crianças ucranianas levadas para a Rússia nos primeiros meses da guerra, como parte de um programa sistemático do Kremlin para “russificá-las“. A investigação revela ainda novos vínculos entre o presidente russo, Vladimir Putin, e o programa.
O relatório também aponta que a aeronave presidencial russa transportou grupos de crianças ucranianas entre maio e outubro de 2022, com voos realizados a partir do campo militar de Chkalovsky, perto de Moscou.

“O programa de deportação de crianças ucranianas é parte de um sistema liderado pelo Kremlin para transformá-las em cidadãs russas“, afirmou Nathaniel Raymond, diretor executivo do Laboratório de Pesquisa Humanitária de Yale, e um dos principais pesquisadores da investigação.
Raymond deve apresentar suas descobertas ao Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) nesta quarta-feira (4). Ele também afirmou que as provas obtidas reforçam a possibilidade de novas acusações contra Putin por “transferência forçada” de pessoas de um grupo étnico para outro.
A pesquisa se baseou em dados obtidos em três bancos de dados de adoção do governo russo, coletados ao longo de 20 meses. Além disso, a investigação mapeou a logística e o financiamento do programa, confirmando a identidade de 314 crianças retiradas da Ucrânia.
Stephen Rapp, ex-embaixador dos Estados Unidos para crimes de guerra, revisou o relatório e concluiu que as evidências comprovam “o envolvimento direto do governo russo, promovendo mudanças na legislação e na prática para acelerar adoções coercitivas que seriam ilegais pelas próprias leis russas antes de fevereiro de 2022”.
Em março de 2023, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandados de prisão contra Putin e a comissária presidencial da Rússia para os direitos das crianças Maria Lvova-Belova, por crime de guerra relacionado à deportação de crianças ucranianas.
Lvova-Belova negou que o governo russo tenha agido contra a vontade das crianças ou de seus responsáveis legais. Segundo ela, as crianças foram colocadas sob tutela temporária de famílias russas e não foram entregues para adoção definitiva. A Rússia, que não reconhece o TPI, afirmou que os mandados são “sem sentido”.
Crime de guerra e genocídio
A deportação em massa forçada de pessoas durante um conflito é classificada pelo Direito Internacional Humanitário como um crime de guerra. A transferência forçada de crianças, particularmente, configura um ato genocida. No caso da guerra da Ucrânia, tais denúncias surgiram ainda nos primeiros dias de combate e desde então vêm aumentando.
Em junho de 2022, menos de quatro meses após a invasão russa, a então alta comissária da ONU (Organização das Nações Unidas) para os direitos humanos, Michelle Bachelet, disse que seu escritório investigava tais alegações. Ela destacou a suspeita de que crianças ucranianas órfãs vinham sendo adotadas por famílias russas sem o devido procedimento legal e citou relatos de que a Rússia estava “modificando a legislação existente para facilitar o andamento das adoções” em Donetsk e Luhansk.
Em fevereiro de 2023, o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, usou a palavra “genocídio” para definir a abdução de crianças ucranianas durante a guerra. Ele se manifestou em mensagem de vídeo exibida em sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
“O crime mais assustador é que a Rússia rouba crianças ucranianas”, disse Kuleba no evento realizado em Genebra, na Suíça, acrescentando que tais ações constituem “provavelmente a maior deportação forçada da história moderna”. E sentenciou: “Este é um crime genocida.”
A denúncia foi reforçada por Annalena Baerbock, ministra das Relações Exteriores da Alemanha. “O que poderia ser mais desprezível do que tirar as crianças de suas casas, longe de seus amigos, de seus entes queridos?”, questionou ela na mesma sessão do Conselho.
A chefe da diplomacia alemã citou o caso de 15 crianças que teriam sido levadas de Kherson ainda no início da guerra, sendo que a mais jovem tinha nove anos à época. “Não vamos descansar até que todas essas crianças estejam em casa”, afirmou a ministra. “Porque os direitos das crianças são direitos humanos, e os direitos humanos são universais.”
O Departamento de Estado norte-americano e o gabinete do procurador-geral da Ucrânia não responderam aos pedidos de comentário da agência. A Ucrânia estima que cerca de 19,5 mil crianças tenham sido levadas para a Rússia ou para a Crimeia, território ucraniano ocupado.