Belarus reeduca crianças ucranianas e as torna ‘inimigas da própria nação’, diz relatório

Documento entregue ao TPI relata processo de 'apagamento da identidade ucraniana' contra menores levados durante a guerra

Um relatório entregue nesta semana ao Tribunal Penal Internacional (TPI) alerta para o processo de reeducação imposto a crianças ucranianas em Belarus, para onde foram levadas pelas forças da Rússia durante a guerra da Ucrânia. O documento foi produzido em parceria pelo centro de direitos humanos Zmina, o think tank Freedom House e o Centro Regional de Direitos Humanos da Ucrânia.

Segundo os autores do relatório, as crianças levadas aos campos de reeducação belarussos passam por um processo de “apagamento da identidade ucraniana” que visa transformá-las em “inimigas de sua própria nação”. Diante de tais alegações, pedem a abertura de uma investigação e a emissão de mandados de prisão contra os acusados.

“Esta política da Federação Russa, da República de Belarus e do Estado da União visa destruir a autoconsciência dos ucranianos e educar os nossos filhos como futuros cidadãos da Federação Russa e requer atenção especial ”, disse a analista jurídica da Zmina Onisia Sinyuk.

Milhares de crianças ucranianas não conseguiram fugir da agressão russa (Foto: WikiCommons)

Autoridades ucranianas investigam desde os primeiros meses de guerra a deportação de crianças como possível caso de genocídio. Kiev alega que mais de 19 mil crianças foram retiradas de territórios ucranianos ocupados pelas tropas russas, algumas delas direcionadas a Belarus.

Um estudo da Universidade de Yale revelou que são mais de 2,4 mil as crianças ucranianas levadas para Belarus, com idades que variam entre os seis e os 17 anos. A oposição belarussa já havia acionado o TPI, pedindo que responsabilizasse o presidente Alexander Lukashenko e autoridades do governo por sua participação no processo.

“Os autores do relatório conseguiram enquadrar a reeducação de crianças ucranianas como perseguição discriminatória e crimes específicos ao abrigo do Estatuto de Roma (tratado internacional que estabeleceu o TPI), como o tratamento desumano, a tortura mental e a transferência forçada de crianças”, diz o centro Zmina. “Isto indica a gravidade dos atos ilegais relevantes e, portanto, a necessidade de uma resposta decisiva por parte da comunidade internacional.”

Em janeiro, Pavel Latushka, ex-ministro da cultura belarusso e hoje ativista da oposição, entregou ao TPI evidências do suposto envolvimento de Lukashenko. Ele alegou que Minsk não esconde que as crianças estão sendo doutrinadas e relatou ainda casos de menores transferidos para a Rússia com propósito de adoção, mesmo contra a própria vontade.

Foi justamente a extração de crianças ucranianas que levou o TPI a emitir um mandado de prisão contra o presidente russo Vladimir Putin e Maria Alekseyevna Lvova-Belova, comissária para os Direitos da Criança no gabinete dele. Segundo a corte, os crimes que motivaram os mandados “teriam sido cometidos em território ucraniano ocupado pelo menos desde 24 de fevereiro de 2022”, data da invasão russa.

Já os indícios de que Belarus também participa do processo começaram a surgir em junho de 2023. Na ocasião, Dzmitry Shautsou, secretário-geral da Cruz Vermelha belarussa, confirmou que o país participa do processo e que o objetivo é oferecer “melhorias de saúde” aos jovens.

Crime de guerra e genocídio

A deportação em massa forçada de pessoas durante um conflito é classificada pelo Direito Internacional Humanitário como um crime de guerra. A transferência forçada de crianças, particularmente, configura um ato genocida. No caso da guerra da Ucrânia, tais denúncias surgiram ainda nos primeiros dias de combate e desde então vêm aumentando.

Em junho de 2022, menos de quatro meses após a invasão russa, a então alta comissária da ONU (Organização das Nações Unidas) para os direitos humanos, Michelle Bachelet, disse que seu escritório investigava tais alegações. Ela destacou a suspeita de que crianças ucranianas órfãs vinham sendo adotadas por famílias russas sem o devido procedimento legal e citou relatos de que a Rússia estava “modificando a legislação existente para facilitar o andamento das adoções” em Donetsk e Luhansk. 

Em fevereiro de 2023, o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, usou a palavra “genocídio” para definir a abdução de crianças ucranianas durante a guerra. Ele se manifestou em mensagem de vídeo exibida em sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

“O crime mais assustador é que a Rússia rouba crianças ucranianas”, disse Kuleba no evento realizado em Genebra, na Suíça, acrescentando que tais ações constituem “provavelmente a maior deportação forçada da história moderna”. E sentenciou: “Este é um crime genocida.”

A denúncia foi reforçada por Annalena Baerbock, ministra das Relações Exteriores da Alemanha. “O que poderia ser mais desprezível do que tirar as crianças de suas casas, longe de seus amigos, de seus entes queridos?”, questionou ela na mesma sessão do Conselho.

A chefe da diplomacia alemã citou o caso de 15 crianças que teriam sido levadas de Kherson ainda no início da guerra, sendo que a mais jovem tinha nove anos à época. “Não vamos descansar até que todas essas crianças estejam em casa”, afirmou a ministra. “Porque os direitos das crianças são direitos humanos, e os direitos humanos são universais.”

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