Ocidente contra-ataca e coloca em xeque a mídia estatal russa, fundamental para a propaganda do Kremlin

Veículos controlados pelo Kremlin são acusados de disseminar conteúdo pró-Moscou visando aos interesses geopolíticos de Vladimir Putin

Por André Amaral

Os constantes ataques à liberdade de imprensa na Rússia, bem como os questionamentos à idoneidade dos veículos jornalísticos estatais, representam um grande desafio para Moscou. Fundamental no projeto do Kremlin de difundir desinformação e propaganda, a mídia estatal marca presença em todo o mundo, sendo reproduzida nas mais diversas línguas. Entretanto, a situação começou a mudar. Esses canais estão agora na mira das nações ocidentais, que têm imposto uma série de restrições a eles.

Meios de comunicação controlados pelo Kremlin, como Sputnik, RT (ex-Russia Today), Redfish Media e Ruptly, marcam presença global e estão disponíveis de forma multilíngue na internet. Embora sempre tenham atuado a serviço do governo Putin, com certa complacência dos país onde estão presentes, a desconfiança em torno deles cresceu vertiginosamente desde o início do conflito na Ucrânia, no dia 24 de fevereiro. Todos passaram a ser formalmente acusados ​​de sofrer “influência” governamental para a disseminação de conteúdo que visa a favorecer os interesses geopolíticos de Moscou.

O Redfish, um coletivo de mídia com sede em Berlim, passou a ser rotulado por plataformas como Twitter, Facebook e Instagram como uma “agência afiliada ao governo russo”. Na descrição de perfil que usa nessas redes, no entanto, se posiciona como um “meio de comunicação social NÃO controlado pelo Estado”, “editorialmente independente” e “ao lado dos oprimidos”. Segundo a revista norte-americana The Week, todavia, pelo seu envolvimento com questões que extrapolam os limites da Rússia, o canal é descrito como um “salão de propaganda”.

Mídia russa reproduz desinformação do Kremlin em diversos idiomas (Foto: www.kremlin.ru/Divulgação)

Um exemplo recente desse tipo de operação de influência data de 4 de fevereiro de 2022. O Redfish sustentou em sua conta no Twitter que a Caxemira estava se tornando a “nova Palestina”. Ao lançar na rede um trailer para um documentário feito no território disputado entre Índia e Paquistão, o meio digital disparou: “A Caxemira indiana está rapidamente se tornando um estado de colonos. Enquanto os políticos indianos clamam pelo ‘modelo israelense’ na Caxemira, falamos com famílias separadas, pastores despejados e vítimas da militarização”.

A alfinetada nos indianos através da máquina de propaganda evidencia o enfraquecimento da relação estratégica Índia-Rússia, à medida que as relações China-Rússia têm se fortalecido. Para piorar, além de Beijing, Moscou também estendeu o abraço a Islamabad, segundo o jornal The Print. Outro fator que tem contribuído para a atenuação do vínculo entre os países são as frequentes e veementes críticas russas ao grupo Quad (Diálogo Quadrilateral sobre Segurança), uma espécie de “mini Otan” no Indo-Pacífico que reúne Índia, EUA, Austrália e Japão.

Não é de hoje que o Redfish está no radar da mídia ocidental por supostamente ser um veículo de propaganda do Kremlin, segundo a revista The Wire. Já um artigo de 2018 do The Daily Beast afirmou que o veículo não era tão independente quanto dizia ser: um “produto de uma equipe interna de correspondentes e produtores, a maioria dos quais trabalhou pela última vez para a mídia do governo russo”, definiu o site de notícias dos EUA.

Em abril de 2021, o Facebook chegou a banir a página do Redfish por um breve período, justificando violações aos padrões da comunidade com postagens sobre a derrota do fascismo na Segunda Guerra Mundial e o Holocausto.

Desestabilizar para conquistar

As redes de notícias russas também são acusadas de usar a Catalunha, comunidade autônoma na Espanha, para desestabilizar a União Europeia (UE). A máquina do Kremlin estaria agindo para levar aos olhos da opinião pública um paralelo entre a crise catalã e os conflitos da Crimeia desde a anexação da península em 2014 pelo presidente Vladimir Putin.

Na última década, a mídia pró-Moscou escolheu o lado dos separatistas e multiplicou sua cobertura das questões catalãs em espanhol, inglês, alemão e russo, usando a narrativa de que o governo e o sistema de justiça espanhóis seriam os culpados pela repressão violenta na região nordeste, como mostrou o jornal El País. Em 2017, o jornal pró-Moscou Vzglyad fez uma analogia entre os episódios na Espanha e os no território disputado no Mar Negro.

“Os eventos na Catalunha lembraram os eventos na Crimeia no início de março de 2014, quando um plebiscito sobre a independência também estava sendo preparado na península. Somente na península os militares russos ajudaram a proteger o processo de vontade popular. Na Catalunha, a polícia local ainda é neutra. Quanto ao estatuto jurídico das duas regiões europeias, é bastante idêntico”, dizia o material.

Catalães celebram o Dia Nacional da Catalunha, festa que comemora a resistência local durante o Cerco de Barcelona (Foto: WikiCommons)

A verdade como ‘inimiga’

Perder o controle da opinião pública russa sempre foi o grande temor do regime de Putin, diz a ONG Tony Blair Institute for Global Change. “Na era das redes sociais, a verdade se tornou o principal inimigo do Kremlin”, afirma um artigo publicado pela organização em seu site.

Na visão do instituto, com a ajuda da mídia estatal usada como ferramenta de propaganda, o Kremlin vem impondo sua narrativa que demoniza o Ocidente pelas sanções impostas após a invasão à vizinha Ucrânia, com o objetivo de unir os cidadãos russos em torno do seu presidente.

No Brasil, por exemplo, a versão local da Sputnik aborda diversos temas sobre o impacto da “operação militar especial”, o eufemismo imposto pelo Kremlin para se referir ao conflito na Ucrânia. Na reportagem ‘Por que o Brasil também sente os efeitos colaterais do conflito na Ucrânia?’, o texto observa que “as sanções antirrussas promovidas pelo Ocidente vão — e já estão — produzindo efeitos econômicos em diversas nações do globo”.

“Uma das principais narrativas da propaganda é a afirmação de que a Rússia é vítima da ‘cultura do cancelamento‘. O Ocidente tem que desmascarar tais alegações e usar os canais restantes enquanto entrega mensagens-chave aos russos comuns e revela as consequências da agressão injustificada do Kremlin na Ucrânia”, sugere como resposta a ONG do ex-primeiro-ministro do Reino Unido que debate temas polêmicos da política internacional.

A resposta ocidental

Os meios estatais russos, tidos como essenciais para o esquema de desinformação de Moscou, estão aprendendo da pior maneira que as empresas ocidentais ainda têm controle de grande parte da infraestrutura da Internet. E as big techs estão cada vez mais fora dos limites para RT e Sputnik.

Desde que Moscou lançou sua invasão da Ucrânia no final de fevereiro, o presidente russo, Vladimir Putin, aumentou sua produção de propaganda e reprimiu gigantes como Facebook e Twitter ao limitar acesso.

Facebook teve acesso parcialmente bloqueado na Rússia (Foto: Creative Commons/Stok Catalog)

Mas o que está distante do poder de fogo cibernético do mandatário russo é como a maioria das empresas americanas domina o complexo mundo de serviços de terceiros – desde plug-ins de segurança a ferramentas de marketing online – que alimentam sites e aplicativos do mundo fora da China.

Segundo o site Politico, esses serviços, que incluem Google AnalyticsFacebook Domain Insights e uma gama de ofertas de marketing online, desconectaram RT, Sputnik, Ruptly, bem como duas agências de notícias estatais russas, a Ria Novosti e a Tass.

“Embora os sites ainda possam operar, eles foram desapropriados de uma complexa rede de serviços de publicidade, marketing e segurança interconectados quase exclusivamente ocidentais, que se tornaram um pilar para o funcionamento de sites e aplicativos. Isso limitou a capacidade do Kremlin de segmentar e atingir um público global”, diz o Politico, no artigo intitulado ‘Máquina de propaganda da Rússia sofre outro golpe’.

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