“Síria foi totalmente abandonada após terremoto”, avalia brasileiro enviado ao país

Paulo Sérgio Pinheiro, chefe de uma comissão que avalia o impacto da tragédia, culpa a própria ONU pela falta de ajuda às vítimas

A Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Síria avalia que a ONU (Organização da Nações Unidas), o governo sírio e outras partes são responsáveis por atrasos na entrega de ajuda de emergência aos sírios após o terremoto do mês passado. O presidente do grupo, o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, avalia as falhas como graves, destacando a demora na chegada de resposta aos tremores.

“A primeira constatação é a de que a comunidade internacional, inclusive os órgãos das Nações Unidas, não foram capazes na Síria de imediatamente atender às vítimas. Durante três dias não houve e não aconteceu nada. A Síria foi totalmente abandonada. Os esforços foram feitos pela própria população. Depois de sete dias tendo o governo da Síria autorizado mais duas passagens na fronteira, melhorou, mas se perderam dias preciosos”, disse Pinheiro.

Segundo a comissão, o governo sírio levou uma semana inteira para permitir o acesso à ajuda transfronteiriça. As autoridades sírias e grupos opositores impediram a chegada de ajuda às comunidades afetadas, sendo a resposta aos terremotos caracterizada por problemas que impediram a entrega de ajuda urgente e vital para o noroeste da Síria.

Para eles, essas falhas envolveram o governo e outras partes no conflito, bem como a comunidade internacional e as Nações Unidas.

Escola destruída pelo terremoto na Síria (Foto: Joe English/Unicef)
Acordo de cessar-fogo

Paulo Sério Pinheiro destaca ainda a falha em garantir um acordo de cessar-fogo em meio à guerra civil no país, bem como a demora para viabilizar a chegada de ajuda pela rota disponível, incluindo equipes de resgate e equipamentos na primeira semana vital após o terremoto.

“O outro desastre foi que o conflito continuou. Nossa primeira manifestação da comissão, logo depois do terremoto, era que era preciso um cessar fogo imediato, mas não ocorreu. As partes no conflito continuaram seus ataques. Quer dizer, trazendo mais uma camada de sofrimento da população. E a crise humanitária que já existia foi agravada com o terremoto e depois em cima do terremoto, não houve nenhuma suspensão das hostilidades. Então, isso é que nós achamos que é preciso: que a comunidade internacional trabalhe diretamente e intensamente sobre a possibilidade de um cessar fogo”, disse o brasileiro.

“Falência gritante da diplomacia”

O texto adiciona que os sírios se sentiram abandonados e negligenciados por aqueles que deveriam protegê-los nos momentos mais desesperadores. Pinheiro avalia que houve uma falha da diplomacia.

“Nós mesmos dissemos em certo momento que era abominável fazer depender a vinda dos circuitos de ajuda humanitária de uma resolução do Conselho de Segurança. Nós esperamos que isso não se repita”, disse ele. “Esses quase 12 anos de conflito são uma falência gritante da diplomacia, e está no momento de a diplomacia internacional retomar uma luta comum por um cessar-fogo, porque é a única maneira de poder garantir uma ajuda humanitária necessária à população civil”.

A Comissão de Inquérito da ONU sobre a Síria lança seu último relatório pouco antes do 12º aniversário da crise.

A nova publicação documenta violações contínuas dos direitos humanos e do direito humanitário em todo o país nos últimos seis meses de 2022, incluindo a situação particularmente terrível para sírios ao longo das linhas de frente no norte e noroeste.

Para Pinheiro, os sírios agora precisam de um cessar-fogo abrangente que seja totalmente respeitado, para que os civis, incluindo trabalhadores humanitários, estejam seguros.

Destruição

Ele afirma que “devido à crueldade e cinismo das partes em conflito”, novos ataques estão sendo investigados nas áreas que foram atingidas pelos terremotos”. O especialista brasileiro cita um ataque israelense relatado na semana passada ao aeroporto internacional de Aleppo, um canal para ajuda humanitária.

Comunidades inteiras foram destruídas e a ONU estima que cerca de 5 milhões de pessoas precisam de abrigo básico e assistência não alimentar na parte síria da zona do terremoto.

Já antes dos terremotos de 6 de fevereiro, mais de 15 milhões de sírios, mais do que em qualquer momento desde o início do conflito, precisavam de assistência humanitária.

Violações aos direitos humanos

O relatório aponta que as partes em conflito na Síria cometeram violações e abusos generalizados dos direitos humanos nos meses que antecederam os terremotos que atingiram a região no último mês.

Em áreas controladas pelo governo, a comissão documentou o aumento da insegurança em Dara’a, Suwayda’ e Hama, além da continuação de prisões arbitrárias, tortura, maus-tratos e desaparecimentos forçados. As violações dos direitos de propriedade incluíam apreensões, leilões e proibições de acesso à propriedade.

A comissão apresentará as conclusões ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra nesta terça-feira (14).

Crianças e suas famílias buscaram refúgio em um centro de acolhimento no noroeste da Síria (Foto: Ocha)
Situação no noroeste da Síria

Os civis que vivem no noroeste afetado pelo terremoto foram particularmente expostos a ataques mortais nos meses anteriores.

Em um único ataque indiscriminado em novembro, as forças do governo usaram munições de fragmentação para atacar campos de refugiados densamente povoados na província de Idlib, dentro da área controlada pela oposição. No ato morreram sete civis e mais 60 podem ter ficado feridos.

Em agosto, outro ataque envolvendo foguetes não guiados lançados do solo matou 16 civis e feriu 29 em um movimentado mercado em Al-Bab, a nordeste de Aleppo.

Em julho, ataques aéreos das Forças Aeroespaciais da Federação Russa destruíram uma casa civil em Judaydah, matando sete membros de uma família e ferindo 13 outros civis.

Segundo o relatório, a violência aponta para um padrão há muito estabelecido de ataques indiscriminados, que podem equivaler a crimes de guerra.

Retorno de refugiados

Além disso, a comissão constatou que ainda não existem condições para o retorno seguro e digno. Durante o período do relatório, há relatos de sírios que tiveram pedidos negado, foram arbitrariamente presos ou impedidos de acessar suas casas após retornarem a áreas controladas pelo governo.

Além disso, grupos armados nas áreas afetadas pelo terremoto têm restringido regularmente os direitos de mulheres e meninas.

Segundo os autores, a maioria dos desabrigados nessas áreas são meninas e mulheres, muitas delas chefes de família. Assim, o relatório aponta que a ampliação da ajuda deve levar em consideração o impacto de gênero da crise.

Desaparecidos

A comissão apoia os pedidos das famílias para que uma entidade internacional independente apoie a busca pelos desaparecidos e pelas famílias dos sobreviventes e celebra os primeiros passos nessa direção.

No final deste mês, o secretário-geral da ONU, António Guterres, deve informar a Assembleia Geral sobre a questão das pessoas desaparecidas na Síria.

Para o grupo, governo e outras partes no conflito prolongaram deliberadamente o sofrimento de centenas de milhares de familiares ao reter informações sobre o destino dos desaparecidos ou desaparecidos por muito tempo.

Mais ajuda aos refugiados e deslocados após o terremoto

O alto comissário da ONU para refugiados, Filippo Grandi, concluiu uma visita de cinco dias às áreas arrasadas pelo terremoto da Síria e Turquia. Ele visitou sobreviventes e pessoas afetadas, bem como equipes humanitárias no local, prestando apoio urgente às pessoas necessitadas.

O terremoto matou 54 mil pessoas nos dois países e causou destruição em massa em uma área com mais de 23 milhões de habitantes, incluindo muitos que foram deslocados na Síria ou através da fronteira para Turquia como refugiados durante 12 anos de conflito.

Ao avaliar os danos, Grandi também revisou e discutiu a resposta humanitária imediata com as autoridades dos dois países. Além de Ancara, o chefe do Acnur (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) visitou Hatay e Gaziantep na Turquia.

Na Síria, ele esteve em Latakia, Hama e Damasco e realizou uma visita transfronteiriça a pessoas afetadas pelo terremoto e outras pessoas deslocadas no noroeste da Síria

A ONU pediu US$ 1 bilhão para a resposta humanitária ao terremoto em Turquia e quase US$ 400 milhões para a Síria.

Conteúdo adaptado do material publicado originalmente pela ONU News

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