Anistia Internacional denuncia ‘extensos crimes de guerra’ no conflito do Sudão

Relatório cita violência sexual, ataques com motivação étnica e civis mortos no fogo cruzado ou deliberadamente alvejados

“Extensos crimes de guerra estão sendo cometidos no Sudão enquanto o conflito entre as Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês) e as Forças Armadas Sudanesas (SAF, na sigla em inglês) devasta o país.” A afirmação consta de um relatório publicado na quinta-feira (3) pela ONG Anistia Internacional, que tomou como base 181 entrevistas e as análises de material audiovisual e imagens de satélite.

O documento revela abusos diversos cometidos pelas duas partes envolvidas no conflito. São casos de violência sexual, destruição de infraestrutura humanitária, saques e pilhagem, ataques com motivação étnica e civis deliberadamente alvejados ou mortos no fogo cruzado. Algumas violações equivalem a crimes de guerra.

“Os civis em todo o Sudão estão sofrendo um horror inimaginável todos os dias, enquanto as Forças de Apoio Rápido e as Forças Armadas Sudanesas disputam imprudentemente o controle do território”, disse Agnès Callamard, secretária-geral da Anistia Internacional. “As pessoas estão sendo mortas dentro de suas casas ou enquanto procuram desesperadamente por comida, água e remédios.”

Criança sudanesa com a mãe, ambas deslocadas devido ao conflito (Foto: Mohamed Zakaria/Unicef)

De acordo com o documento, mulheres e crianças não são poupadas da violência. Há dezenas de casos de meninas, algumas com apenas 12 anos, estupradas e submetidas a outras formas de violência sexual. “Algumas foram mantidas por dias em condições de escravidão sexual”, diz a ONG.

No final de julho, o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) relatou 435 crianças mortas, com mais duas mil feridas, nos primeiros cem dias de conflito. Na ocasião, a agência relatou mais de 2,5 mil violações graves dos direitos das crianças, média de mais de uma por hora.

Kodi Abbas, um professor de 55 anos, é um dos milhares de sudaneses atingido pela violência. Ele contou à Anistia que dois de seus filhos, Hassan, de seis anos, e Ibrahim, de oito, bem como o sobrinho Koko, de sete, foram mortos no fogo cruzado em 20 de abril, em uma área ocupada por civis da capital Cartum.

“Homens, mulheres e crianças são pegos no fogo cruzado, pois ambos os lados, muitas vezes usando armas explosivas com efeitos de ampla área, lançaram ataques frequentes em bairros civis densamente povoados”, afirma o relatório.

Já os ataques com motivação étnica têm como vítimas sobretudo pessoas da etnia Masalit. Um episódio registrado em maio ilustra bem a situação. As RSF teriam sido responsáveis pelos assassinatos de dezenas de civis e pela “total destruição” da cidade de Misterei, a oeste de El Geneina, capital do Estado de Darfur Ocidental.

A explosão da violência étnica, em grande parte atribuída a grupos nômades “árabes” em aliança com as RSF, levou dezenas de milhares de pessoas a fugirem para o vizinho Chade.

Por que isso importa?

O Sudão vive um violento conflito armado que coloca frente a frente dois generais que comandam o país africano desde o golpe de Estado de 2021: Abdel Fattah al-Burhan, chefe das forças armadas, e Mohamed Hamdan “Hemedti” Daglo, à frente das RSF, corpo paramilitar da violenta milícia Janjawid.

As tensões decorrem de divergências sobre como cem mil combatentes da milícia paramilitar devem ser integrados ao exército e quem deve supervisionar esse processo. 

No dia 16 de abril, um domingo, explosões puderam ser ouvidas no centro da capital Cartum, mais precisamente no entorno do quartel-general militar do Sudão e do palácio presidencial, locais estratégicos reivindicados tanto por militares quanto pelas RSF.

O aeroporto internacional da capital, tomado pela milícia, foi bombardeado com civis dentro. Aeronaves foram destruídas, e caças da força aérea sudanesa e tanques foram usados contra os paramilitares.

Desde que o conflito se espalhou, primeiro pela capital, depois por outras regiões do país, as nações estrangeiras que tinham cidadãos e representantes diplomáticos no Sudão realizaram um processo de evacuação, viabilizado por um frágil cessar-fogo que não foi totalmente respeitado pela partes.

Os números de civis mortos e vítimas de abusos diversos não param de crescer desde então. A situação levou o secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), António Guterres, a dizer em julho que o país africano está “à beira de uma guerra civil“.

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