Fim de missão de paz da ONU ‘desintegra o Estado’ e fortalece mercenários russos no Mali

Analistas destacam importância da Minusma e projetam 'vácuo de segurança' no país com a saída dos 13 mil soldados das Nações Unidas

A Minusma, missão de paz da ONU (Organização das Nações Unidas) no Mali, iniciou no último sábado (1) a retirada de suas tropas do país africano. A decisão atende a um pedido de Bamako, que antes havia determinado também o fim das operações do exército da França em parceria com o governo local. De agora em diante, o Wagner Group, da Rússia, se firma como único parceiro dos malianos no setor de segurança, estratégia que analistas consideram temerária. Já no apoio humanitário à população, importante contribuição dos soldados das Nações Unidas, a nação ficará totalmente desguarnecida.

“O Estado do Mali está se desintegrando. Essas tropas da ONU mantiveram uma aparência de governo e ordem, e as últimas ilhas vão explodir com eles”, disse ao site The Defense Post Djallil Lounnas, professor de Estudos Internacionais da Universidade Al Akhawayn, no Marrocos.

A luta contra o extremismo islâmico é o maior desafio de segurança do Mali, que observa o crescimento de facções como o Grupo de Apoio ao Islã e aos Muçulmanos (GSIM, na sigla em francês), braço da Al-Qaeda, e o Estado Islâmico no Grande Saara (EIGS).

Pesou para a expulsão da Minusma uma diferença de pontos de vista entre o governo do Mali e a ONU. Bamako queria que a missão atuasse como uma força de combate aos extremistas, mas as Nações Unidas argumentaram que tais ações não fazem parte de suas diretrizes. O Wagner, por sua vez, se propõe a realizar tais funções, algo que as forças francesas faziam com mais competência antes de serem expulsas.

Soldado da Minusma, a missão de paz da ONU no Mali (Foto: Minusma)

O embaixador do Mali na ONU, Issa Konfourou, reforçou a insatisfação de seu governo em discurso ao Conselho de Segurança da ONU na sexta-feira (30), depois da votação que encerrou a missão de paz. “A Minusma certamente não alcançou seu objetivo fundamental de apoiar os esforços do governo para proteger o país”, disse ele.

Vinham servindo no Mali mais de 13 mil militares a serviço das Nações Unidas, que no sábado (1º) iniciaram “a retirada ordenada e segura de pessoal, com o objetivo de concluir este processo até 31 de dezembro de 2023.” Somente a ordem de proteger civis vai ser preservada até o final deste setembro. 

Trata-se da missão de paz que mais perdeu homens entre todas as que a ONU mantém no mundo, com 170 mortes em combate desde que se instalou no Mali, em 2013.

Sem os boinas azuis, Bamako entende que suas forças são capacitadas para atender às necessidades de segurança. Sequer cita os mercenários russos, que oficialmente atuam no território maliano somente como instrutores. E, mesmo que atuem no campo, algo que na prática já fazem, não têm, por exemplo, a estrutura militar das forças armadas francesas, que contavam inclusive com suporte aéreo de precisão fornecido pelos EUA.

“Não temos medo da saída de Minusma. Temos o que é preciso para defender o território nacional até Kidal”, disse um militar do Mali, citando uma região no nordeste do país que é um tradicional reduto de grupos rebeldes armados. “O exército do Mali está crescendo em força”, completou.

Nem todos no Mali, porém, compartilham dessa visão. “O exército do Mali praticamente não realiza operações militares no terreno e muitas vezes se contenta com ataques aéreos coordenados pelo Wagner. Essa estratégia tem seus limites”, disse outra autoridade de malinesa eleita, cuja identidade também não foi revelada pela reportagem.

Michael Shurkin, especialista em política e segurança da África Ocidental, concorda que as forças armadas do Mali são insuficientes para enfrentar os desafios que se apresentam a partir de agora.

“O exército do Mali está melhor do que costumava ser, mas ainda é muito pequeno e muito fraco para ser usado em mais de um lugar ao mesmo tempo”, disse ele, de acordo com o The Defense Post. “Os militares acham que estão virando a maré. Todos os eventos empíricos mostram que isso não é verdade.”

A situação é ainda mais complicada após o frustrado motim na Rússia liderado por Evgeny Prigozhin, ex-chefe do Wagner. Desde o ocorrido, o futuro da organização é incerto, embora ela continue operando normalmente e Moscou tenha afirmado que as missões no exterior não serão impactadas.

Questão humanitária

Além da incerteza quanto à manutenção da segurança, pesa contra o grupo mercenário seu péssimo histórico no que tange aos direitos humanos, colecionando denúncias de crimes de guerra e contra a humanidade. Assim, é inimaginável que o Wagner substitua a Minusma no apoio humanitário, um problema decorrente da insegurança principalmente no norte e nordeste do país.

“O Wagner não tem os recursos militares da ONU, nem o mesmo compromisso com a mediação comunitária, direitos humanos e iniciativas de ‘corações e mentes’”, disse à agência Al Jazeera Paul Melly, jornalista e pesquisador do think tank londrino Chatham House. “A situação humanitária provavelmente vai piorar. Poderemos ver mais populações deslocadas e maiores problemas para garantir entrega segura e confiável de ajuda a pessoas vulneráveis.”

Sob esse ponto de vista, o analista reforça a importância da Minusma, que “sustentou a prestação de serviços públicos básicos e administrativos em algumas áreas onde funcionários do governo ou agências humanitárias teriam dificuldade em operar sem algum apoio de segurança.”

Os maiores prejudicados são os malianos do norte e nordeste, onde em muitas localidades a atuação do Estado simplesmente inexiste. Segundo dados da rede BBC, nessa porção do país há mais de 1,5 mil escolas fechadas, com a economia seriamente prejudicada.

Mesmo o embaixador do Mali na ONU, que tanto criticou a contribuição da missão de paz no campo da segurança, admite que ela era crucial na ajuda à população. “O povo e o governo do Mali gostariam de aplaudir sua contribuição em outras áreas, em particular na área de assistência humanitária e social”, disse ele ao Conselho de Segurança.

Por que isso importa?

O Mali vive um período de instabilidade que começou com o golpe de Estado em 2012, quando grupos rebeldes e insurgentes islâmicos tomaram o poder no norte do país. De quebra, a nação, independente desde 1960, viveu em maio de 2021 o terceiro golpe de Estado em um intervalo de apenas dez anos, seguindo o que já havia ocorrido em 2012 e também em 2020.

A mais recente turbulência política começou semanas antes do golpe, com a demissão do primeiro-ministro Moctar Ouane pelo presidente Bah Ndaw. Reconduzido ao cargo pouco depois, Ouane não conseguiu formar um novo governo, e a tensão aumentou com a falta de pagamento dos ingressos dos professores. O maior sindicato da categoria, então, começou a se preparar para uma greve.

Veio a noite do dia 24 de maio, quando o coronel Assimi Goita, vice-presidente do país, destituiu Ndaw e Ouane de seus cargos e ordenou a prisão de ambos na capital Bamako. Segundo ele, os dois líderes civis violaram a carta de transição ao não consultarem os militares na formação do novo governo.

Ao contrário do que ocorreu em golpes anteriores, que contaram com apoio popular, desta vez a maior parte da população rejeitou a tomada de poder por Goita, que derrubou o governo de transição recém-instituído e assumiu o comando do país. A população civil não foi às ruas protestar contra o militar, mas usou as redes sociais para mostrar sua insatisfação.

Em meio à instabilidade política, cresceu no país a presença de grupos jihadistas ligados à Al-Qaeda e principalmente ao Estado Islâmico (EI), o que levou a uma explosão de violência nos confrontos entre extremistas e militares, com milhares de civis entre as vítimas.

Os conflitos, antes concentrados no norte do Mali, se expandiram inclusive para os vizinhos Burkina Faso e Níger. Assim, a região central maliana se tornou um dos pontos mais violentos de todo o Sahel africano, com frequentes assassinatos étnicos e ataques extremistas contra as forças do governo.

A situação tornou-se ainda mais delicada devido à retirada das tropas da França, que até agosto de 2022 colaboravam com o governo nacional nas operações de contraterrorismo. A decisão de Paris de evacuar seus militares gerou dúvidas quanto à capacidade de o país africano sustentar os avanços obtidos na luta contra os insurgentes.

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