Entre marretadas e decapitações, Wagner Group coleciona denúncias de crimes de guerra

Mercenários deixam um rastro de sangue por todos os países onde atuam, seja na África, no Oriente Médio ou na Europa

Até o início da guerra da Ucrânia, o Wagner Group vivia nas sombras, operando em sigilo em vários países do mundo. Era uma organização paramilitar secreta voltada a difundir a influência de Moscou através de parcerias no setor de segurança com governos da África e do Oriente Médio. Os mercenários ganharam ainda mais relevância durante o conflito na Europa, onde têm sido cruciais para os esforços de guerra da Rússia. Resolveram, então, oficializar sua existência. No território ucraniano, como nas outras regiões onde atuam, deixaram sua marca indelével: a violência. Entre marretadas e decapitações, colecionam denúncias de crimes de guerra e contra a humanidade, e o fracassado motim contra o regime de Vladimir Putin, no final de semana passado, abre uma janela de oportunidade para que os abusos sejam julgados e punidos por órgãos intergovernamentais.

O fato de o Wagner ter operado em segredo durante tantos anos dificulta a apuração das atrocidades cometidas pelo grupo, mas algumas vêm sendo amplamente denunciadas, embora sigam sem punição. Foi na Síria, em 2017, três anos após sua fundação, que a organização atraiu os olhares internacionais pela primeira vez, apresentando ao mundo o que viria a ser seu mais violento símbolo: a marreta.

Na ocasião, os mercenários filmaram e divulgaram um vídeo da morte de Hamadi Bouta, um desertor do exército da Síria capturado pela organização paramilitar privada russa. As imagens mostram o indefeso combatente sendo torturado até a morte com uma marreta, para depois ser decapitado. As cenas abriram caminho para as denúncias de crimes de guerra contra o Wagner, mas na Rússia foram recebidas de forma distinta por algumas pessoas.

Combatentes do Wagner Group, organização paramilitar privada aliada ao Kremlin (Foto: VK/reprodução)

A marreta virou um símbolo da organização, que inclusive começou a faturar com a venda de produtos que estampavam o objeto. Evgeny Prigozhin, que até o motim liderava a organização, chegou a enviar simbolicamente uma marreta dentro de uma caixa de violino ao Parlamento Europeu, pouco após o órgão ter aprovado uma resolução classificando a Rússia como Estado patrocinador do terrorismo. Em casa, nacionalistas russos passaram a posar para fotos com a arma, segundo destaca o site investigativo The Intercept.

A marreta ressurgiu em um grotesco vídeo do Wagner durante a guerra da Ucrânia. A vítima, na ocasião, foi um desertor do grupo, um criminoso que se juntou aos mercenários através do programa do Kremlin que oferecia perdão estatal aos condenados que aceitassem deixar a prisão para servir na guerra durante seis meses.

O homem cuja morte foi filmada, Yevgeny Nuzhin, havia desertado do Wagner, disposto a se entregar às tropas ucranianas. No entanto, acabou recapturado e assassinado pelos antigos companheiros. No vídeo, ele diz que foi “julgado” pelos mercenários, que o acusaram de “trair seu povo e seus camaradas”, de acordo com a agência Reuters. Prigozhin, que àquela altura já havia admitido ser o chefe da organização, confirmou o assassinato, reforçando que considerava a vítima “um traidor”.

Rastro de sangue na África

Entre as duas marretadas, o Wagner teria protagonizado ao menos três massacres na África, continente onde marca presença com mais força. Na República Centro-Africana, onde lutaram ao lado das forças do governo contra grupos rebeldes que tentavam depor o presidente Faustin-Archange Touadéra, os mercenários são responsabilizados por execuções sumárias, detenções arbitrárias, tortura em interrogatórios e deslocamento forçado da população civil. Lá, dois episódios se destacam dos demais.

Um deles é o Massacre de Bongboto, em julho de 2021, quando 13 pessoas foram executadas com tiros na cabeça. A ONU (Organização das Nações Unidas) atribuiu as mortes a “militares e forças de segurança russas”, que teriam ameaçado as testemunhas caso denunciassem a autoria. O Wagner não foi nominalmente responsabilizado pelo massacre, mas a forte presença do grupo na República Centro-Africana e as referências à nacionalidade dos agressores tornam a associação inevitável.

No mesmo país, em janeiro de 2022, o Wagner foi formalmente acusado de assassinar 65 pessoas e ferir outra centena nos vilarejos de Aigbado e Yang, onde civis foram atingidos em meio a uma troca de tiros entre os russos e um grupo rebelde local. Linda Thomas-Greenfield, representante dos EUA nas Nações Unidas, citou os mercenários em um relatório ao Conselho de Segurança da ONU. “Essas forças estão cometendo atos horríveis e atropelando os direitos humanos”, disse ela.

O episódio mais recente e melhor documentado na África ocorreu no Mali, onde o Wagner colabora com as forças de segurança nas operações de contraterrorismo. Segundo o Departamento de Estado dos EUA, os mercenários, em parceria com o exército maliano, “conduziram uma operação militar” que levou à morte de “mais de 500 pessoas” na vila de Moura em março de 2022.

A ONU também divulgou um relatório sobre o massacre de Moura, embora não tenha citado o Wagner nominalmente. O documento diz que “homens brancos armados”, que falavam uma língua desconhecida, deram suporte às forças armadas do Mali.

As investigações das Nações Unidas indicaram que as autoridades malianas realizavam uma missão de contraterrorismo contra o grupo Katiba Macina, facção do Grupo de Apoio ao Islã e aos Muçulmanos (GSIM, na sigla em francês), que por sua vez é um braço da Al-Qaeda.

Durante o confronto, militantes do Katiba Macina que estavam na multidão dispararam de volta contra as tropas. Nesse primeiro momento foram registradas as mortes de pelo menos 20 civis e cerca de uma dúzia de supostos membros da organização extremista.

A essa troca de tiros inicial se seguiram quatro dias de violência na aldeia, com ao menos 500 pessoas assassinadas, muitas delas sumariamente executadas. Dessas vítimas, somente 238 foram devidamente identificadas pela ONU.

Na mira da Justiça

Entidades internacionais têm gradativamente aumentado a pressão para que o Wagner Group seja levado ao tribunal. A Anistia Internacional, que documentou algumas das atrocidades dos russos, destacou em relatório de 13 de abril do ano passado que crimes como os cometidos pelos mercenários ficam invariavelmente impunes. Mas instou as autoridades “a procederem judicialmente de forma independente e imparcial nos tribunais ordinários”, citando particularmente o massacre de Moura.

O episódio no Mali, por sinal, vem sendo investigado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Em artigo publicado em abril deste ano pelo Instituto Lieber, da Academia Militar de West Point, nos EUA, o professor Michael N. Schmitt e o juiz John C. Tramazzo argumentam que a corte de Haia poderia ir atrás do Wagner e de seu agora ex-chefe, Evgeny Prigozhin, da mesma forma como emitiu um mandado de prisão contra o presidente russo Vladimir Putin.

Segundo Catrina Doxsee, diretora associada do Projeto de Ameaças Transnacionais do think tank Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), de Washington, o recente motim fracassado, que tirou Prigozhin do comando do Wagner, é a oportunidade perfeita para que o Ocidente derrube a rede de influência dos mercenários na África.

“Os tomadores de decisão dos EUA e aliados têm uma oportunidade fugaz de apresentar a essas nações formas alternativas e estáveis ​​de assistência e, ao fazê-lo, combater a crescente presença de Moscou no continente”, diz ela em artigo publicado na segunda-feira (26).

A analista diz que a incerteza quanto ao futuro e à liderança do Wagner deixa as nações africanas vulneráveis em seus planos de segurança. “Em meio a esse caos, parcerias alternativas claras e viáveis ​​dos Estados Unidos ou de seus aliados podem parecer mais atraentes do que nunca para os clientes do Wagner“, afirma ela, para então concluir: “A chance de interromper a crescente influência da Rússia na África pode não aparecer novamente.”

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