Investigação aponta que exército local e militares estrangeiros assassinaram 500 pessoas no Mali

Episódio ocorreu em março de 2022 e foi investigado. Wagner Group não foi citado nominalmente, mas é suspeito de envolvimento

A ONU (Organização das Nações Unidas) divulgou nesta sexta-feira (12) o relatório fruto de uma investigação conduzida nos últimos meses para apurar o massacre na aldeia de Moura, no Mali, em março de 2022. A conclusão é a de que as forças armadas malianas, apoiadas por militares estrangeiros, foram responsáveis pelos assassinatos de cerca de 500 pessoas.

“Estas são descobertas extremamente perturbadoras”, disse o alto comissário da ONU para os direitos humanos, Volker Turk. “Execuções sumárias, estupro e tortura durante conflitos armados constituem crimes de guerra e podem, dependendo das circunstâncias, constituir crimes contra a humanidade.”

Diante da negativa do governo local em autorizar uma visita dos investigadores a Moura, o episódio foi apurado com base em entrevistas com vítimas e outras testemunhas, na análise de material forense, imagens de satélite e outras fontes de informação.

As autoridades malianas classificaram a operação, que começou no dia 27 de março e terminou em um massacre de civis, como uma missão de contraterrorismo tendo como alvo o grupo Katiba Macina, facção do Grupo de Apoio ao Islã e aos Muçulmanos (GSIM, na sigla em francês), que por sua vez é um braço da Al-Qaeda.

Assimi Goita, coronel que governa o Mali, escoltado pelo exército (Foto: Twitter/PresidenceMali)

“Segundo testemunhas, um helicóptero militar sobrevoou a aldeia, abrindo fogo contra as pessoas, enquanto outros quatro helicópteros pousaram e tropas desembarcaram. Os soldados encurralaram as pessoas no centro da aldeia, atirando aleatoriamente naqueles que tentavam escapar”, diz o documento elaborado pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).

Durante o confronto, militantes do Katiba Macina que estavam na multidão dispararam de volta contra as tropas. Nesse primeiro momento foram registradas as mortes de pelo menos 20 civis e cerca de uma dúzia de supostos membros da organização extremista.

A essa troca de tiros inicial se seguiram quatro dias de violência na aldeia, com ao menos 500 pessoas assassinadas, muitas delas sumariamente executadas. Dessas vítimas, somente 238 foram devidamente identificadas pela ONU.

“Os soldados começaram a ir de casa em casa à procura de ‘supostos terroristas’, aparentemente selecionando e executando sumariamente pessoas de barbas compridas, de calças compridas ou com marcas nos ombros, interpretadas como um sinal de que habitualmente portavam armas, e mesmo aqueles que apenas mostravam sinais de medo”, diz o documento.

Além das execuções sumárias, foram identificados os casos de ao menos 58 mulheres e meninas estupradas ou submetidas a outras formas de violência sexual. Também há episódios de moradores da aldeia detidos arbitrariamente e torturados.

Além dos militares malianos, o ataque contou com “homens brancos armados” que falavam uma língua desconhecida. Embora não tenham sido identificados no relatório, esses paramilitares possivelmente pertencem ao Wagner Group, uma organização mercenária russa que firmou parceira com o governo do Mali para combater o extremismo no país.

Embora o governo do Mali tenha aberto uma investigação própria prometendo apurar o ocorrido, mais de um ano depois não anunciou a descoberta de qualquer irregularidade.

“É vital que as autoridades malianas tomem todas as medidas necessárias para garantir que as forças malianas envolvidas em quaisquer operações militares e de aplicação da lei, incluindo militares estrangeiros sob seu comando ou controle, respeitem totalmente as regras do direito internacional humanitário e do direito internacional dos direitos humanos.” disse Turk.

Por que isso importa?

O Mali vive um período de instabilidade que começou com o golpe de Estado em 2012, quando grupos rebeldes e insurgentes islâmicos tomaram o poder no norte do país. De quebra, a nação, independente desde 1960, viveu em maio de 2021 o terceiro golpe de Estado em um intervalo de apenas dez anos, seguindo o que já havia ocorrido em 2012 e também em 2020.

A mais recente turbulência política começou semanas antes do golpe, com a demissão do primeiro-ministro Moctar Ouane pelo presidente Bah Ndaw. Reconduzido ao cargo pouco depois, Ouane não conseguiu formar um novo governo, e a tensão aumentou com a falta de pagamento dos ingressos dos professores. O maior sindicato da categoria, então, começou a se preparar para uma greve.

Veio a noite do dia 24 de maio, quando o coronel Assimi Goita, vice-presidente do país, destituiu Ndaw e Ouane de seus cargos e ordenou a prisão de ambos na capital Bamako. Segundo ele, os dois líderes civis violaram a carta de transição ao não consultarem os militares na formação do novo governo.

Ao contrário do que ocorreu em golpes anteriores, que contaram com apoio popular, desta vez a maior parte da população rejeitou a tomada de poder por Goita, que derrubou o governo de transição recém-instituído e assumiu o comando do país. A população civil não foi às ruas protestar contra o militar, mas usou as redes sociais para mostrar sua insatisfação.

Em meio à instabilidade política, cresceu no país a presença de grupos jihadistas ligados à Al-Qaeda e principalmente ao EI, o que levou a uma explosão de violência nos confrontos entre extremistas e militares, com milhares de civis entre as vítimas.

Os conflitos, antes concentrados no norte do Mali, se expandiram inclusive para os vizinhos Burkina Faso e Níger. Assim, a região central maliana se tornou um dos pontos mais violentos de todo o Sahel africano, com frequentes assassinatos étnicos e ataques extremistas contra as forças do governo.

A situação tornou-se ainda mais delicada devido à retirada das tropas da França, que até agosto de 2022 colaboravam com o governo nacional nas operações de contraterrorismo. A decisão de Paris de evacuar seus militares gerou dúvidas quanto à capacidade de o país africano sustentar os avanços obtidos na luta contra os insurgentes.

Quem assumiu o espaço deixado pelos franceses foi o Wagner Group, um grupo russo de mercenários que firmou acordo de cooperação com Goita. Fontes sustentam que o pagamento pelos serviços da organização russa seria de US$ 10,8 milhões por mês, dinheiro que viria da extração de minerais.

Segundo o general francês Laurent Michon, comandante da Operação Bakhane das forças armadas da França, a retirada de suas tropas não tem nenhuma relação com a chegada dos mercenários, como se especulava. Ele diz que o governo militar maliano sempre deixou claro seu desejo de “nos ver partir sem demora”.

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