Há cinco anos, quando o Quênia inaugurou sua nova linha ferroviária de US$ 4,7 bilhões, projetada construída e financiada pela China, o governo local prometeu que ela geraria empregos e ajudaria a transformar o país em uma nação industrializada de renda média. O resultado, porém, foi bem diferente. O trecho final, que chegaria a Uganda, jamais foi concluído, e o projeto se tornou alvo de ações judiciais, denúncias de corrupção e protestos de ambientalistas e trabalhadores do setor rodoviário afetados. É o que aponta reportagem do jornal The New York Times.
A SGR (ferrovia de bitola padrão, em tradução literal), como os quenianos chamam a linha, foi inserida na Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês, de Belt And Road Initiative), trilionária iniciativa lançada pelo presidente chinês Xi Jinping para financiar projetos de infraestrutura no exterior. A proposta venceu outra, que propunha a reforma da linha ferroviária centenária já existente, dos tempos da colonização britânica.
À época em que a ideia era debatida, relatórios independentes, um deles do Banco Mundial, sugeriram que a modernização da antiga linha seria mais interessante, devido ao custo reduzido. As recomendações foram ignoradas.
Levada adiante, a SGR tornou-se o ponto alto da crise de endividamento do governo do presidente Uhuru Kenyatta, no poder desde 2013. A situação levou o Exim Bank of China, que financiou o projeto, a pedir o reembolso, recusando-se a bancar o trecho final até Uganda.
Para pagar o credor, a alternativa encontrada pelo governo foi aumentar a austeridade econômica no país e criar novos impostos. Um duro castigo para a população queniana, já afetada por uma crise econômica impulsionada pela seca e pela guerra na Ucrânia, com aumento dos preços de alimentos e combustíveis.
Sistema mais caro
Sequer o transporte de mercadorias, uma das funções primordiais da SGR, justifica a obra. Um relatório parlamentar aponta que os fretes rodoviários são duas vezes mais baratos, dado que desestimulou o uso do novo sistema. O governo, então, impôs o uso da ferrovia aos importadores, o que gerou protestos e ações judiciais.
Os escândalos associados ao projeto levaram a mais processos na Justiça, em meio às denúncias de que políticos inflaram os custos da obra para embolsar dinheiro. Há também muitos casos de pessoas que teriam recebido altos valores sob o falso argumento de que tinham terras ao longo da ferrovia.
“A ferrovia de bitola padrão é a joia da coroa da corrupção no Quênia”, diz o jornalista John Githongo, especializado em casos de corrupção no país africano. “Esse é um triste legado do atual regime”.
A questão ambiental também foi ignorada pelo governo queniano. Quando o projeto foi apresentado, o principal questionamento era quanto à passagem da linha ferroviária pelo Parque Nacional de Nairóbi, um dos poucos do mundo a margear uma capital. O único estudo de viabilidade ficou a cargo dos chineses que tocaram o projeto.
Okiya Omtatah, um proeminente advogado que contestou o projeto na Justiça por conta dessa questão, diz ter recebido duas propostas financeiras para desistir das ações judiciais. Segundo ele, empresários da China ofereceram US$ 300 mil. Diante da recusa, a oferta saltou para US$ 1 milhão. Ele diz que rejeitou também a proposta milionária: “Vocês ficam com o seu dinheiro, eu fico com o meu país”, teria dito.
A situação caótica levou até o governo chinês a desistir de novos projetos como o da SGR, segundo Eric Olander, cofundador do China Global South Project (Projeto Sul Global da China, em tradução literal), que analisa o impacto do investimento chinês na África. “A areia da ampulheta acabou”, disse ele.
Por que isso importa?
A Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês) começou a se desenhar após a crise financeira internacional de 2008, quando as empresas chinesas se voltaram para a Eurásia de olho em atraentes ativos industriais e comerciais. Então, pipocaram projetos de infraestrutura de transporte e energia com financiamento chinês, o principal foco desde então. Em 2013, a iniciativa se estabeleceu globalmente como uma das bases da política externa do presidente Xi Jinping.
O objetivo central da BRI é espalhar a influência de Beijing através do investimento. No total, 140 países foram beneficiados com dinheiro proveniente da iniciativa chinesa até 2020, sendo o maior número da África, 40 nações. Entre 2013 e dezembro de 2020, a China investiu cerca de US$ 770 bilhões nos países participantes da BRI.
No início, os governos receberam muito bem os bilhões de dólares injetados por Beijing, especialmente pelo fato de isso ter ocorrido logo após uma recessão global histórica. Hoje, com muitas das nações inseridas na BRI em situação financeira dramática, manter em dia o pagamento das dívidas é missão quase impossível.
Isso é parte da estratégia da China, que invariavelmente usa a inadimplência como justificativa legal para assumir a gestão dos próprios projetos que financiou. Assim, estende os tentáculos do Partido Comunista Chinês (PCC) mundo afora ao assumir o controle de infraestruturas cruciais em todos os continentes.
A questão ambiental é outro ponto negativo da BRI. Segundo Vuk Vuksanovic, pesquisador da Escola de Economia e Ciências Políticas de Londres, Beijing tem como objetivo “a terceirização da poluição e da degradação ambiental para países mais pobres e distantes, com extrema necessidade de financiamento de infraestrutura e desenvolvimento socioeconômico, cujos governos ignoram os riscos ambientais”.
Um estudo do think tank canadense Iffras (Fórum Internacional por Direitos e Segurança, da sigla em inglês) corrobora a opinião de Vuksanovic. Segundo relatório publicado em setembro de 2021, a iniciativa chinesa tende a “aumentar ainda mais a degradação ambiental e as mudanças climáticas”.
Em países como Indonésia, Egito, Quênia, Bangladesh, Vietnã e Turquia, a BRI está ligada a projetos de usinas de geração de energia movidas a carvão. No final de 2016, a ONG Global Environment Institute (Instituto de Meio Ambiente Global, em tradução literal) registrou 240 projetos movidos a carvão ligados à iniciativa chinesa.
“A Nova Rota da Seda tem um grande foco na construção de projetos de energia, e quase 90% deles são intensivos em carbono, operando com combustível fóssil“, diz o documento do Iffras. “Dada a magnitude da BRI, que se espalha pelos cinco continentes, o planeta vai sofrer impactos graves e negativos graças ao jeito chinês de construir projetos em que as diretrizes ambientais dificilmente são seguidas”.