Canadá ajudou a China a capturar cidadãos em troca de vantagens comerciais, diz documentário

Alvos são sobretudo chineses acusados de corrupção ou crimes financeiros e pressionados por Beijing a retornar ao país asiático

O governo do Canadá colaborou durante décadas com Beijing na perseguição e captura de cidadãos chineses considerados fugitivos pelo regime comunista, obtendo em troca sobretudo vantagens comerciais, mas também acordos diplomáticos e de segurança. A denúncia foi feita pelo documentário Fifth State (Quinto Estado, em tradução literal), lançado nesta semana pela emissora canadense CBC.

O caso surge na esteira da revelação de que a China mantém em vários países do mundo, inclusive no Canadá, centros avançados de polícia usados para perseguir dissidentes e supostos criminosos e obrigá-los a retornar ao país asiático para que prestem contas por seus alegados crimes. Os alvos são pessoas acusadas principalmente de corrupção ou crimes financeiros.

A existência desses estabelecimentos foi revelada em setembro de 2022 pela ONG de direitos humanos Safeguard Defenders, segundo a qual havia três centros de polícia chineses em Montreal. O documentário, porém, indica que Ottawa tinha conhecimento das ações do governo estrangeiro em solo canadense bem antes disso, com esquadras policiais ligadas a Beijing atuando em Montreal, Toronto e Vancouver.

Oficiais de polícia chineses em Beijing, abril de 2007 (Foto: WikiCommons)

Calvin Chrustie, ex-oficial da Real Polícia Montada do Canadá na província da Colúmbia Britânica, disse que de fato recebeu ordens “de Ottawa no mais alto nível” para “ajudar e colaborar” com autoridades da China na perseguição a um “fugitivo de alto perfil que eles procuravam no área de Vancouver.” Ele, porém, alega que se recusou a obedecer.

Por sua vez, o advogado Lorne Waldman, que atua em causas ligadas a imigração e defendeu cidadãos chineses procurados pela justiça do país asiático, afirmou que os “interesses econômicos” do governo canadense “impulsionaram isso”, referindo-se à perseguição.

“Fizemos vista grossa à falta de Estado de direito na China e fechamos os olhos ao fato de que devíamos ser muito mais céticos em relação às provas provenientes da China”, diz ele, sugerindo que ao menos alguns dos fugitivos poderiam ser inocentes. “E, com o passar do tempo, fizemos vista grossa ao fato de que agentes chineses estavam agindo no Canadá.”

Colaboração diplomática e de segurança

A perseguição a supostos criminosos em países estrangeiros é parte da operação Fox Hunt (Caça à Raposa, em tradução literal), lançada em 2014 pela China com o objetivo de repatriar cidadãos acusados de crimes financeiros que haviam recebido abrigo em nações estrangeiras.

Em 2019, relatório de uma comissão parlamentar canadense voltada a segurança e inteligência havia abordado a operação. Diz o documento que, entre as medidas adotadas por Beijing para fazer a iniciativa funcionar estavam “pressão diplomática sobre Estados estrangeiros para cooperarem com as suas investigações e viagens secretas para persuadir ou coagir os fugitivos a retornar.”

O documentário afirma que, além das vantagens econômicas, a colaboração com o governo chinês teria rendido a Ottawa acordos no setor de segurança, por exemplo no combate ao tráfico de drogas ilegais. E também teriam ajudado a diplomacia do Canadá a negociar a libertação de cidadãos canadenses detidos na China.

Foi justamente um caso desses que estremeceu as relações entre Ottawa e Beijing, hoje são bastante ruins. Em 20218, os canadenses Michael Spavor e Michael Kovrig foram detidos pelas autoridades da China, numa ação que o Canadá trata como retaliatória.

A detenção da dupla seria uma reação à prisão pelo Canadá de Meng Wanzhou, executiva da Huawei acusada de espionagem industrial pelos EUA, que tinham contra ela um mandado internacional de prisão. Beijing queria, com isso, negociar a libertação de sua cidadã antes que fosse entregue às autoridades norte-americanas. Ela retornou à China em setembro de 2021, enquanto Spavor e Kovrig voltaram ao Canadá.

Direitos humanos ignorados

Durante o período em que os governos colaboravam, conforme a denúncia da rede CBC, uma questão que chama a atenção é o descaso canadense com os direitos humanos. Nem mesmo a perspectiva de que os fugitivos pudessem enfrentar tortura e até a pena de morte levou Ottawa a recusar a colaboração.

A colaboração sequer passava pela corte máxima do Judiciário canadense, também pelo fato de que os dois países não têm um acordo com extradição. Assim, o assunto era sempre tratado em audiências no Conselho de Imigração e Refugiados.

“Não acredito que um juiz do Tribunal Superior algum dia autorizaria uma extradição de volta para a China, dado o Estado de direito lá”, disse Waldman. “Então, se for esse o caso, e não estamos preparados para extraditar e nunca extraditamos, por que estamos deportando pessoas de volta para a China com base em evidências que sabemos não serem confiáveis?”

Stephen Nagy, pesquisador do think tank Instituto Macdonald-Laurier e professor da Universidade Cristã Internacional em Tóquio, levantou essa questão em entrevista à revista Newsweek.

“O que não está claro no caso da China é por que eles cooperaram nessas operações, sabendo que os cidadãos que retornassem à China seriam executados ou viveriam uma vida de prisão que é desumana para os padrões canadenses”, disse o especialista. “Parece que sucessivos líderes escolheram cooperar em recompensa pelo acesso ao mercado.”

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