Relatório aponta ameaça chinesa ao meio ambiente e aos direitos humanos na América Latina

Documento analisou 26 projetos de atividades comerciais chinesas na região, espalhados em nove países. Irregularidades vão da violação do direito de viver em um ambiente saudável a danos ao meio ambiente, incluindo negligência à saúde dos trabalhadores

Um relatório do Coletivo sobre Financiamento e Investimentos Chineses, Direitos Humanos e Meio Ambiente (CICDHA, da sigla em inglês), uma ONG que promove os direitos sociais, ambientais, políticos e culturais na América Latina, examinou 26 casos de violações perpetradas por empresas e financiadores chineses em nove países latino-americanos, sendo mais da metade na Amazônia. O documento detalhou as dimensões do impacto ambiental causado e revelou desobediência às normas internacionais de direitos humanos.

A América Latina tornou-se parte fundamental do plano de expansão da influência global chinesa e 21 países do continente aderiram à iniciativa chinesa da “Nova Rota da Seda” (Belt and Road Iniciative, da sigla em inglês BRI), lançada pelo governo Xi Jinping em 2015 que financia projetos de infraestrutura no exterior em quase 70 países.

A região tem estreitado cada vez mais seus laços com Beijing. Setores como mineração, produção e distribuição de energia elétrica têm crescente investimento chinês, em projetos pouco transparentes que geram renda e, invariavelmente, um gigantesco impacto ambiental.

Coca Codo Sinclair: a problemática barragem multimilionária que a China construiu no Equador (Foto: WikiCommons)

O relatório do CICDHA verificou 23 consórcios e pelo menos seis bancos envolvidos no desenvolvimento de projetos nos setores de mineração (12), hidrelétrica (6), petróleo e gás (3) e outros (5). Os problemas foram registrados no Brasil, Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia, Equador, Venezuela e México.

Entre as conclusões, o estudo aponta que, em meio aos 26 projetos analisados, há pelo menos 24 casos de violação do direito de viver em um ambiente saudável e sem danos ao meio ambiente. Além disso, foram 18 ocorrências de violação dos direitos coletivos dos povos indígenas, oito situações de descumprimento de direitos trabalhistas e outros dez casos de desrespeito aos direitos civis, políticos e econômicos.

Após coletarem as evidências, as mais de 60 organizações da sociedade civil por trás do relatório listaram várias recomendações. Uma das mais significativas é a de que o governo chinês elabore um Plano de Ação sobre Empresas e Direitos Humanos, no qual sejam adotadas medidas urgentes para garantir que suas entidades cumpram com as obrigações extraterritoriais para evitar impactos dentro das comunidades afetadas.

As empresas envolvidas

Há pelo menos 20 empresas chinesas envolvidas nos projetos analisados. Todas elas têm incidência nos impactos sobre os direitos relacionados com o ambiente e os povos indígenas. As mais significativas, por setor, são as seguintes:

Mineração: Empresa de Construção Ferroviária (CRCC); Tongling Nonferrous Metals Groups Holding Company e China International Trust and Investment Corporation (CITIC)

Hidroeletricidade: Sinohydro Corporation Limited e o consórcio entre a China International Water & Electric Corporation (CWE) e a China Three Gorges Corporation (CTG)

Hidrocarbonetos: os três projetos são da responsabilidade da China National Petroleum Corporation (CNPC) e da China Petrochemical Corporation (SINOPEC)

Outros projetos de infraestruturas: China Communications Construction Company (CCCC)

Além disso, os financiadores com maior montante de investimento são o Banco Industrial e Comercial da China (8 projetos), Banco de Exportação-Importação da China (7), Banco de Desenvolvimento da China (7) e Banco da China (5).

Segundo o relatório, esses bancos tendem a atuar conjuntamente nos mesmos projetos, principalmente na mineração, o setor com o maior número de violações dos direitos ambientais e dos povos indígenas.

Saúde negligenciada

As empresas chinesas também falharam no contexto do enfrentamento à Covid-19 e do direito à saúde. O documento do CICDHA aponta que a falta de medidas de biossegurança e práticas inadequadas no ambiente de trabalho de alguns projetos foram denunciadas durante a pandemia e podem ter resultado no aumento do número de casos e de mortes entre os trabalhadores.

Também foram denunciadas pressões inadequadas para aumentar a duração da jornada de trabalho e situações de trabalhadores forçados a assinar documentos que isentavam as empresas de responsabilidade.

Problemas

A ambição chinesa e o dinheiro vivo falam alto em meio às crescentes necessidades econômicas na América Latina, onde o país asiático se encontra em uma posição cada vez mais forte. Mas nem tudo são flores nessa relação.

De acordo com um artigo intitulado “Como a China Roubou a América Latina”, publicado pela American Ideas Institute, uma organização sem fins lucrativos com sede em Washington, um projeto chinês orçado em US$ 1,5 bilhão para expandir uma refinaria de petróleo na Costa Rica foi cancelado depois que um conflito de interesses foi encontrado nas projeções de viabilidade, o que destacou seu impacto ambiental. 

No Equador, a Coca Codo Sinclair, uma barragem construída por uma empresa chinesa através de um empréstimo de US$ 1,7 bilhão, rapidamente se transformou em um desastre. Tudo por conta da erosão regressiva acelerada nos rios provocada pela usina hidrelétrica. O impacto ambiental teve como consequência o desaparecimento da cachoeira San Rafael, de 150 metros, em 2020. Um ex-vice-presidente do Equador foi condenado por suborno no caso. 

Da mesma forma, o chamado “arco minero”, uma grande área de mineração no sul da Venezuela, foi entregue, junto com outros países e grupos, a empresas chinesas, que quase destruíram a paisagem natural da área, que fica no limite norte da Amazônia. “A ilegalidade e até os massacres são abundantes, com pouco ou nenhum benefício para a economia venezuelana”, diz o artigo.

No Peru, o projeto da Mina Marcona, desenvolvido pela empresa chinesa Shougang Hierro Perú SAA, é um dos mais conflituosos do país, acumulando ações judiciais por violações de direitos trabalhistas, segundo relatou o portal Diálogo Américas. Durante a pandemia, a empresa obrigou os trabalhadores a entrar e permanecer dentro da mina entre 30 e 60 dias, causando 24 mortes de trabalhadores infectados pela Covid-19 e incapazes de sair, afirma o relatório.

Trabalhadores do Sindicato dos Mineiros de Shougang Hierro Perú protestam contra mineradora chinesa em outubro de 2021 (Foto: Twitter/Reprodução)
Recomendações

O relatório do CICDHA trouxe recomendações à China para corrigir e remediar violações de direitos. Entre elas, assegurar que entidades públicas envolvidas na cooperação bilateral, empresas estatais chinesas e outras entidades executoras de projetos implementem políticas institucionais que garantam transparência, incluindo a obrigação de publicar informações ambientais e sociais relevantes aos projetos e investimentos nas etapas de estudo, exploração, implementação e encerramento.

Por que isso importa?

Empresas e bancos estatais chineses têm investido bilhões na América Latina, alavancando interesses econômicos dos asiáticos no continente.

Nos últimos 20 anos, o comércio bilateral cresceu 25 vezes, de US$ 12 bilhões em 1999 para US$ 306 bilhões em 2018, colocando a China como o segundo maior parceiro comercial da América Latina, atrás dos Estados Unidos.

Segundo Chris Pleasence, em artigo no jornal britânico Daily Mail, tudo isso dá à China a vantagem que ela usa para obter seu próprio caminho no cenário internacional, desde ganhar votos na ONU até isolar seus inimigos – mais notavelmente Taiwan, já que Beijing muitas vezes exige que os países cortem relações diplomáticas com a ilha antes da entrega do dinheiro.

A alta concentração da atividade chinesa nos setores agrícolas da América Latina tem aumentado consideravelmente a demanda em relação aos sistemas de abastecimento de água e aumentado o desmatamento e as emissões de gases de efeito estufa, de acordo com um estudo de 2015 coordenado pelo Instituto de Governança Econômica Global da Universidade de Boston.

Alguns projetos, como centrais hidrelétricas, provocaram protestos de grupos indígenas em vários países da América Latina.

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