A Rússia está realmente se tornando vassalo da China?

Artigo diz que Beijing tem a chance de colocar Moscou a seus pés, mas não tem nenhuma razão convincente para fazê-lo

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site do think tank Carnegie Endowment for International Peace

Por Mikhail Korostikov

Desde o início da invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, a cooperação Moscou-Beijing cresceu em todas as direções. Os russos não escondem o fato de que apostam na China no confronto global com o Ocidente, vendo Beijing como um centro alternativo de poder com interesses e valores semelhantes aos seus.

O volume de negócios entre os dois países, que atingiu o recorde de US$ 190 bilhões no ano passado, aumentou outros 39% no primeiro trimestre deste ano em comparação com o mesmo período de 2022. As exportações de matérias-primas russas para a China e as importações de produtos chineses aumentaram acentuadamente.

Sem surpresa, tudo isso levou a rumores de que Beijing está usando sua influência econômica e a ruptura da Rússia com o Ocidente para transformar Moscou em uma marionete complacente, forçando concessões unilaterais e humilhantes. Essas preocupações são compartilhadas tanto pelos críticos mais severos do regime russo no Ocidente quanto pelos falcões pró-guerra dentro da Rússia.

A diferença de mais de dez vezes no tamanho das duas economias transformou a expressão “vassalo dependência” em algo que se aproxima da sabedoria popular. Após um exame mais atento, no entanto, fica claro que essa dependência não é tão unilateral, já que a própria Rússia ainda tem bastante poder de influência.

O risco mais citado é o da dependência econômica. Mas, mesmo após o crescimento recorde desde o início da guerra, a participação da China no comércio da Rússia é de aproximadamente 22%: sem dúvida é significativa, mas não é sem precedentes. A China tem uma participação ainda maior (26%) do comércio exterior da Austrália, mesmo com o governo australiano participando ativamente de alianças anti-China, como AUKUS e Quad.

A Austrália não está sujeita às sanções ocidentais, é claro, e, portanto, é menos limitada em sua escolha de parceiros comerciais. No entanto, a importância da China em muitas cadeias de abastecimento globais é tal que, mesmo sem sanções, é praticamente o único consumidor e fornecedor de uma vasta gama de produtos e recursos.

Presidentes da China, Xi Jinping, e da Rússia, Vladimir Putin, julho de 2018 (Foto: Wikimedia Commons)

A China é atualmente o maior parceiro comercial de cerca de 120 países, muitos dos quais economicamente mais dependentes dela do que a Rússia. Esse desequilíbrio não os impede de sair de acordos de investimento, de se envolver em conflitos fronteiriços de décadas com Beijing ou de se tornarem aliados dos Estados Unidos ou da União Europeia (UE). No caso da Rússia, há uma ressalva em relação às exportações de gás, cuja flexibilidade é limitada pela infraestrutura. Quando se trata de petróleo, no entanto, a escolha de parceiros da Rússia é muito mais ampla. Mesmo agora, o volume das exportações russas de petróleo para a Índia (1,7 milhão de barris por dia) e países em desenvolvimento menores (1,6 milhão) é comparável às exportações para a China (2,2 milhões).

Quanto às importações russas, não apenas a China, mas vários outros países (Turquia, Emirados Árabes Unidos, Índia e Estados da Ásia Central) estão se tornando centros de comércio paralelo, revendendo mercadorias sancionadas para a Rússia. Eles são perfeitamente capazes de garantir pelo menos algum influxo de bens necessários para o mercado russo se as relações de Moscou com Beijing azedarem.

Até agora, apesar de toda a conversa sobre “vassalo dependência”, a Rússia não se juntou ao projeto principal da China, a Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês, de Belt And Road Initiative), ou reconheceu as reivindicações territoriais da China no Mar da China Meridional. Moscou também não tem pressa em concluir acordos de concessão onerosos com a China ou mesmo em alterar a legislação para esse fim.

Medidas como a realocação de indústrias poluidoras para o território russo, a construção de ferrovias de trânsito pela Rússia sem paradas (como a rota Beijing-Berlim), reduções tarifárias unilaterais ou mesmo a eliminação de requisitos de visto para cidadãos chineses demonstrariam que Moscou precisa de Beijing mais do que o o contrário. Mas nenhum deles se materializou.

Quase um ano e meio após a invasão em grande escala, a relação entre a Rússia e a China segue basicamente as mesmas regras de antes. O investimento chinês na Rússia aumentou 150% em 2022, mas continua relativamente pequeno, em parte porque Moscou não está preparada para aceitar investimentos chineses sem certas restrições.

Além disso, Moscou afirmou indiretamente sua independência ao aprisionar supostos ativos de inteligência chineses. Os serviços especiais russos divulgaram deliberadamente esses casos, embora fosse fácil manter o silêncio para evitar irritar Beijing.

O argumento do vassalo também não aborda a questão-chave do motivo: por que Beijing buscaria estabelecer relações desiguais com Moscou? É difícil identificar áreas nas quais a Rússia se recusaria a cooperar com a China em termos normais. O mercado russo está aberto aos produtos chineses, e a Rússia fornece à China de bom grado todos os recursos necessários.

As tentativas de Beijing de pressionar Moscou em algumas áreas onde isso poderia fazer sentido (declarações políticas, concessões de recursos individuais) seriam extremamente arriscadas. O presidente russo, Vladimir Putin, demonstrou claramente os sacrifícios que está disposto a permitir à Rússia para enfrentar as ameaças à sua soberania. No caso de uma tentativa real da China de tornar a Rússia sua vassala, a liderança russa provavelmente preferiria privar os russos de produtos chineses em vez de se submeter.

Finalmente, a guerra não apenas fortaleceu a posição da China em suas relações com a Rússia. Também forneceu a Moscou várias vantagens importantes, principalmente informações sobre como resistir a sanções e travar uma guerra contra o armamento ocidental, que a China não pode obter de nenhum lugar além de Moscou.

Beijing há muito vê o aprofundamento do confronto com o Ocidente como uma inevitabilidade, e não sem razão. Como Beijing não tem intenção de mudar de rumo, a imposição de novas sanções anti-China parece ser apenas uma questão de tempo. A estreita cooperação com o Kremlin e outros órgãos oficiais russos permite a Beijing entender como as sanções afetam a economia, quais métodos de evasão existem, como o sistema financeiro se comportará, quais medidas de proteção são eficazes e quais não são.

A experiência que o exército russo está ganhando atualmente na Ucrânia é ainda mais interessante para Beijing. Uma proporção significativa de armas chinesas é comprada da Rússia ou evoluiu de protótipos russos e soviéticos. Na Ucrânia, a durabilidade desse armamento está sendo testada em grande escala contra análogos ocidentais e em condições reais de guerra.

Certamente, essa experiência pode não ser totalmente aplicável no caso de um ataque a Taiwan, mas mesmo um décimo dessa informação teria que ser obtida pela China à custa do sangue de soldados se ela decidisse descobrir por si mesma. Em vez disso, a cooperação militar estabelecida entre os dois países dá à China acesso a essas informações sem custos significativos.

A relação entre a Rússia e a China não é de forma alguma perfeita, mas os interesses comuns das lideranças de ambos os países e a lógica estratégica do confronto com o Ocidente criam uma base sólida para uma cooperação razoavelmente igualitária. Dentro dessa interação, a China tem uma certa oportunidade de transformar a Rússia em sua vassala – mas, crucialmente, não tem motivos convincentes para fazê-lo. É improvável que essa situação mude nos próximos cinco a dez anos.

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