Com medo dos militares, famílias deserdam filhos que lutam contra o regime em Mianmar

Exército anunciou em novembro de 2021 que tomaria as propriedades de opositores, dando início a uma série de deserdações

Desde novembro de 2021, tornaram-se comuns nos jornais controlados pelo governo militar de Mianmar os anúncios de famílias informando que filhos, filhas e outros parentes foram informalmente deserdados ou renegados porque se uniram a grupos que fazem oposição à junta militar que assumiu o poder no país em fevereiro do ano passado. As informações são da agência Reuters.

Os anúncios tornaram-se comuns a partir do momento em que o exército ameaçou tomar as propriedades de seus oponentes políticos e prender todos aqueles que dessem abrigo a manifestantes contrários ao governo.

“Declaramos que deserdamos Lin Lin Bo Bo porque ele nunca ouve a vontade dos pais”, diz um anúncio postado por San Win e Tin Tin Soe. O filho deles, que antes era vendedor de carros usados, juntou-se a um grupo armado de resistência e hoje vive em uma cidade fronteiriça da Tailândia. A decisão de San e Tin foi tomada após soldados invadirem a casa deles em busca de Lin.

Protesto em maio de 2021, em Mianmar, com a atriz Phone Thiri Kyaw (Foto: Saw Wunna/Unsplash)

“Meus camaradas tentaram me assegurar que era inevitável que as famílias fizessem isso sob pressão”, disse Lin. “Mas eu estava com o coração partido”, afirmou o jovem de 26 anos, que admitiu ter chorado ao ler o anúncio postado pelos pais e que torce para poder reencontrá-los no futuro. “Quero que essa revolução acabe o mais rápido possível”.

A perseguição a parentes de dissidentes não é nova e já ocorreu em outros governos militares do país, em 2007 e no final dos anos 1980. Já a decisão de deserdar membros da família é parte da cultura local, segundo Wai Hnin Pwint Thon, advogada do grupo de direitos humanos Burma Campaign UK, que usa o antigo nome da ex-colônia britânica.

“Os membros da família estão com medo de serem implicados em crimes”, disse ela. “Eles não querem ser presos e não querem ter problemas”. Ainda assim, o governo já afirmou que deserdar dissidentes não basta. Se houver indícios de que a família ainda dá qualquer apoio aos oposicionistas, a perseguição não cessará.

O jornalista So Pyay Aung também foi deserdado pelo pai em novembro do ano passado. Ele filmou a ação violenta da polícia contra manifestantes e publicou as imagens em um site de notícias local, o Democratic Voice of Burma (Voz Democrática de Burma, em tradução literal). Perseguido pelos militares devido ao registro jornalístico, decidiu fugir para a Tailândia com a mulher e a filha.

“Declaro que estou renegando meu filho porque ele fez atividades imperdoáveis contra a vontade de seus pais. Não terei nenhuma responsabilidade relacionada a ele”, diz um aviso publicado por Tin Aung Ko, pai do jornalista.

“Quando vi o jornal que mencionava cortar os laços comigo, fiquei um pouco triste”, disse So. “Mas eu entendo que meus pais tinham medo da pressão. Eles podem ter medo de que sua casa seja confiscada ou apreendida”.

Segundo uma mãe que deserdou a filha através dos jornais e pediu para não ser identificada, a decisão serve essencialmente para tentar afastar o governo. “Minha filha está fazendo o que acredita, mas tenho certeza de que ficará preocupada se tivermos problemas”, disse a mãe. “Eu sei que ela pode entender o que eu fiz com ela”.

De acordo com a advogada Wai, a medida é mesmo um mero recado aos militares, para que os familiares sejam eventualmente deixados em paz. Juridicamente, a ação não gera efeitos de deserdação. “A menos que eles façam isso corretamente, com advogados e um testamento, essas coisas não contam legalmente”, disse ela. “Depois de alguns anos, eles podem voltar a ser família”.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo já causou a morte de ao menos 1,5 mil desde o golpe de 1º de fevereiro de 2021, que sucedeu as eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o NLD venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro, então, a junta militar, que já havia impedido o partido de assumir o poder antes, derrubou e prendeu a presidente eleita Aung San Suu Kyi.

O golpe deu início a protestos no país, respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais. Cerca de 12 mil pessoas já foram presas, invariavelmente sem indiciamento ou julgamento prévio, e muitas famílias continuam à procura de parentes desaparecidos. Jornalistas e ativistas são atacados deliberadamente, e serviços de internet têm sido interrompidos.

No início de dezembro, tropas da junta militar foram acusadas de assassinar 11 pessoas em uma aldeia no noroeste do país. De acordo com uma testemunha, as vítimas, algumas delas adolescentes, teriam sido amarradas e queimadas na rua. Fotos e um vídeo chocantes que viralizaram nas redes sociais à época mostravam corpos carbonizados deitados em círculo no vilarejo de Done Taw, região de Sagaing.

A ação dos soldados seria uma retaliação a um ataque de rebeldes contra um comboio militar. Uma liderança local da oposição afirmou que os civis foram queimados vivos, evidenciando a brutalidade da repressão à população que tenta resistir ao golpe de Estado orquestrado em fevereiro deste ano.

Em meio à violenta repressão por parte do exército, alguns manifestantes fugiram para o exterior ou se juntaram a grupos armados em partes remotas do país. Conhecidos como Forças de Defesa do Povo, esses grupos estão amplamente alinhados com o governo civil deposto.

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