Um recente estudo sobre o trabalho coercitivo imposto à minoria étnica muçulmana dos uigures por Beijing, feito por um importante especialista em políticas do governo chinês na região de Xinjiang, expôs a existência de um novo programa que combina a chamada “reeducação” com condições análogas à escravidão.
Isso significa que, além de tentar modificar as crenças e identidades culturais dos uigures, impondo assim uma homogeneidade cultural na região, a China está envolvendo esse grupo étnico minoritário em uma condição que pode ser equiparada à escravidão moderna, segundo reportagem da revista Newsweek.
Intitulado ‘Inovando o Trabalho Penal: Reeducação, Trabalho Forçado e Integração Social Coercitiva na Região Autônoma Uigur de Xinjiang’, o relatório foi assinado por Adrian Zenz, antropólogo alemão conhecido por ter publicado diversos relatórios e artigos importantes sobre a situação dos uigures na região, entre eles o que denunciou o internamento de cerca de um milhão de pessoas em campos de detenção entre 2017 e 2019. Muitos detidos nesses locais teriam sofrido com a falta de cuidados básicos, tortura e abuso.
Os uigures são enviados para centros de reeducação na China como parte de uma política que o governo chinês alega ser voltada para a “reeducação” e “desradicalização”. Beijing justifica essas detenções como uma medida de combate ao extremismo religioso e ao separatismo naquela parte do país.
A China costumava usar o trabalho penal como uma maneira de controlar dissidentes e minorias étnicas. No entanto, a introdução dos chamados “centros de educação e formação de competências profissionais” marca uma mudança em comparação com a abordagem anterior conhecida como “reforma pelo trabalho”, que foi promovida por Mao Tsé-Tung após a Revolução Comunista.
Segundo o relatório, esses novos centros são diferentes porque não se concentram apenas no trabalho forçado, mas também incluem programas de educação e treinamento profissional, sugerindo uma abordagem mais ampla para influenciar e controlar a população. Isso representa uma evolução nas táticas do governo chinês em relação à repressão de dissidentes e minorias.
Pessoas egressas desses locais são chamadas de “graduados” pelo governo chinês e enfrentam uma escolha ao colocar os pés para fora: aceitar empregos designados ou enfrentar punições. O foco mudou de manter essas pessoas fora da visão pública para integrá-las à sociedade.
Após participarem do programa, os “graduados” enfrentam diversos obstáculos no retorno à sociedade, incluindo salários baixos, longas horas de trabalho, restrições em sua liberdade de movimento e uma vigilância constante, que muitas vezes envolve a categorização étnica.
Além disso, o governo implementa políticas que envolvem a separação de famílias e a colocação de crianças uigures em internatos onde o ensino é exclusivamente em mandarim. Essas práticas estão alinhadas com a estratégia do governo de “dividir e conquistar” as comunidades uigures, apontou o estudo de Zenz.
Crianças uigures em internatos enfrentam restrições severas no uso da língua uigur em sua educação. Elas são fortemente incentivadas a falar e aprender apenas mandarim, em vez de promover o bilinguismo em uigure e mandarim. Além disso, os professores enfrentam penalidades se usarem a língua uigur fora das aulas de idiomas específicas.
Tudo isso reflete uma política rigorosa de assimilação linguística imposta às crianças uigures, limitando seu acesso à sua língua materna e promovendo o uso exclusivo do mandarim na educação.
Denúncias recorrentes
A Campaign for Uyghurs, uma organização de defesa dos direitos humanos e liberdades democráticas dos uigures e outros povos túrquicos na região de Xinjiang, declarou que o governo chinês está apagando a cultura e o modo de vida uigur para obter lucro, tanto por meio deste programa quanto por várias outras estratégias.
Na semana passada, o Outlaw Ocean Project divulgou um relatório que expôs o uso de trabalho forçado de uigures na cadeia de abastecimento de frutos do mar. Muitos desses produtos chegam aos Estados Unidos.
Em 2021, o Congresso norte-americano tomou medidas decisivas para combater o trabalho forçado ao aprovar a Lei de Prevenção do Trabalho Forçado Uigur. A medida dá às autoridades locais maiores poderes para bloquear a importação de bens provenientes da região de Xinjiang e vinculados ao trabalho forçado.
Em maio, outro relatório elaborado por Zenz lançou luz sobre o trabalho forçado sistemático nas plantações de algodão em Xinjiang, região que produz cerca de um quinto do algodão consumido em todo o mundo. Isso significa que o algodão produzido lá pode estar envolvido em trabalho forçado, o que é uma preocupação séria para a indústria global e para os consumidores.
Por que isso importa?
A comunidade uigur é uma minoria muçulmana de raízes turcas que habita a região autônoma de Xinjiang, no noroeste da China. A província faz fronteira com países da Ásia Central, com quem divide raízes étnicas e linguísticas.
Os uigures, cerca de 11 milhões, enfrentam discriminação da sociedade e do governo chinês e são vistos com desconfiança pela maioria han, que responde por 92% dos chineses. Denúncias dão conta de que Beijing usa de tortura, esterilização forçada, trabalho obrigatório e maus tratos para realizar uma limpeza étnica e religiosa em Xinjiang.
Estimativas apontam que um em cada 20 uigures ou cidadãos de minoria étnica já passou por campos de detenção de forma arbitrária desde 2014.
O governo de Joe Biden, nos EUA, foi o primeiro a usar o termo “genocídio” para descrever as ações da China em relação aos uigures. Em seguida, Reino Unido e Canadá também passaram a usar a designação, e mais recentemente a Lituânia se juntou ao grupo.
A China nega as acusações de que comete abusos em Xinjiang e diz que as ações do governo na região têm como finalidade a educação contraterrorismo, a fim de conter movimentos separatistas e combater grupos extremistas religiosos que eventualmente venham a planejar ataques terroristas no país.
O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China Zhao Lijian afirma que o trabalho forçado uigur é “a maior mentira do século”. “Os Estados Unidos tanto criam mentiras quanto tomam ações flagrantes com base em suas mentiras para violar as regras do comércio internacional e os princípios da economia de mercado”, disse ele.