Milhões em impostos pagos por cervejarias ajudam a financiar o regime em Mianmar

Heineken, Carlsberg e ThaiBev seguem operando no país, com projeção de US$ 155 milhões a serem pagos ao governo militar

Desde que a junta militar assumiu o poder em Mianmar, com o golpe de Estado de fevereiro de 2021, umas das estratégias de entidades internacionais para tentar sufocar o violento regime é cortar as fontes de receita estatais. Diante desse cenário, um grupo ativista revelou nesta semana que três importantes cervejarias multinacionais estão entre os maiores financiadores do governo birmanês. As informações são da rede Radio Free Asia (RFA).

O grupo Justice for Myanmar divulgou um relatório no qual afirma que a holandesa Heineken, a dinamarquesa Carlsberg e a tailandesa ThaiBev, que seguem operando em Mianmar, tendem a alimentar o regime militar do país com o pagamento de US$ 155 milhões (R$ 755,5 milhões) em impostos anuais.

“Pagar impostos a pessoas que cometem crimes de guerra é participar diretamente desses crimes”, disse Yadanar Maung, porta-voz do braço birmanês do Justice for Myanmar. “Portanto, as grandes empresas estrangeiras devem decidir se continuarão a participar dos crimes do conselho militar ou deixarão de pagar impostos”.

Soldados de Mianmar durante desfile militar em Naipidau (Foto: Wikimedia Commons)
Boicote

Domesticamente, já existe um movimento para boicotar produtos de empresas nacionais ligadas ao governo, que portanto ajudam a financiar a junta. Entre elas há muitas cervejas birmanesas, além de companhias que produzem cigarros, açúcar, joias, itens de higiene pessoal e até operadoras de telefonia celular.

No caso da vervejaria Myanmar Beer, o boicote tem surtido efeito. As vendas da empresa desde o golpe de Estado caíram pela metade, de US$ 11 milhões antes do golpe para pouco mais de US$ 5 milhões no período de um ano posterior à tomada de poder pelos militares.

Há quem tenha ido além. Kyak Kye, soldado de um grupo rebelde, diz que na região de Magway, onde atua, todos os produtos ligados ao governo são proibidos. “Avisamos quem os transporta e os obrigamos a assinar um compromisso de não fazê-lo novamente. Queimamos e destruímos os produtos na frente das pessoas. Atualmente, não há bens de produção militar em nossas regiões. Esses bens também não são mais encontrados em nossos postos de controle”, disse.

Agora, membros de grupos de resistência pregam boicote às marcas estrangeiras, missão que tende a ser mais complicada. A Heineken, por exemplo, produz diversas marcas diferentes de cerveja, e entre elas há algumas das mais consumidas pela parcela da população que aderiu ao protesto. Caso da cerveja Tiger, de Singapura, que continua sendo bem aceita por aqueles que contestam a junta.

Fonte de renda

O grupo ativista apurou, com base em registros fiscais disponíveis de outubro a dezembro de 2021, que as subsidiárias de Heineken, Carlsberg e ThaiBev pagaram 49,9 bilhões de kyat em Imposto sobre Bens Específicos (SGT) naquele período. Isso equivale a “US$ 27,6 milhões (R$ 138 milhões) com base nas taxas de câmbio médias do Banco Central de Mianmar, que está ilegalmente sob o controle da junta”. 

O caso das cervejarias se destaca porque o SGT é um imposto cobrado especificamente sobre a produção e importação de álcool, com uma alíquota de 60% para cerveja e outra variável para bebidas destiladas.

A partir dos números registrados entre outubro e dezembro de 2021, o Justice for Myanmar calcula quanto a junta arrecada anualmente com as três cervejarias. “Espalhadas ao longo de um ano, as empresas ThaiBev, Heineken e Carlsberg em Mianmar podem pagar até 250 bilhões de kyat, ou US$ 155 milhões, em impostos à junta”, diz o comunicado.

Segundo Min Lwin Oo, do grupo Comitê de Greve do Movimento pela Democracia (Dawei), sufocar financeiramente o governo é uma importante arma da oposição. “Como disse um professor militar americano aposentado, estamos em uma posição difícil para enfrentar a junta militar sozinhos na frente militar”, disse ele. “Se pudermos demolir os pilares econômicos dos militares, isso enfraquecerá a junta militar. Acho que é um método muito eficaz para a revolução”.

Dois pesos e duas medidas

A Heineken e a Carlsberg estão entre as mais de mil empresas ocidentais que deixaram o mercado russo devido à agressão que gerou a guerra na Ucrânia.

Ao justificar sua decisão, em março de 2022, a cervejaria holandesa disse que os negócios “não são mais sustentáveis nem viáveis no ambiente atual” da Rússia. A companhia dinamarquesa disse inicialmente que só deixaria de produzir e vender a cerveja que leva seu nome no país europeu. Mais tarde, reviu a posição e também colocou o negócio na Rússia à venda.

Em Mianmar, porém, a posição é diversa. As duas companhias seguem operando no país asiático, apesar da violenta repressão imposta pelo governo que matou cerca de 3,5 mil civis.

Heineken e ThaiBev não responderam aos pedidos de comentários da RFA. A Carlsberg disse que “como qualquer outra empresa, somos obrigados a pagar impostos e taxas, seja em Mianmar, na Dinamarca ou em qualquer outro mercado”.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar, inclusive vetando resoluções que venham a condenar a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral, como no caso de dezembro de 2022.

Inicialmente, o golpe de Estado foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu financeiramente com a queda. Mas o cenário mudou rapidamente. Para não se distanciar da junta, Beijing classificou a prisão de Suu Kyi e de outros funcionários do governo como uma “remodelação de gabinete”, palavras usadas pela agência de notícias estatal Xinhua.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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