Serviço militar obrigatório em Mianmar expõe desespero do regime, avaliam especialistas

Junta que governa o país vislumbra derrota frente a grupos rebeldes e obriga civis a se alistarem nas Forças Armadas

A partir do mês de abril, todos os homens entre 18 e 35 anos, bem como mulheres de 18 a 27, cumprirão até dois anos de serviço militar obrigatório em Mianmar. Médicos também terão que se alistar, servindo por até cinco anos. A medida, anunciada nesta semana pela junta militar que governa o país, é vista por especialistas como um ato desesperado, em meio às seguidas derrotas das Forças Armadas na luta contra grupos rebeldes e à perspectiva de queda do regime.

A mobilização surge conforme os militares sofrem perdas significativas devido à ofensiva da Tríplice Aliança, uma coalizão rebelde composta por três grupos: o Exército Arakan, o Exército da Aliança Democrática Nacional de Mianmar (MNDAA) e o Exército de Libertação Nacional de Ta’ang. Mais de 40 cidades foram conquistadas pelas forças de resistência desde outubro de 2023.

“Os militares enfrentam claramente uma escassez significativa de mão de obra, razão pela qual estão introduzindo um alistamento militar pela primeira vez na sua história”, disse à agência Reuters Richard Horsey, conselheiro sênior para Mianmar na ONG Grupo Internacional de Crise.

Soldados das forças armadas de Mianmar em 2021 (Foto: WikiCommons)

De acordo com Ye Myo Hein, conselheiro do think tank Instituto da Paz dos Estados Unidos, a maioria dos batalhões das Forças Armadas atualmente não consegue atingir o efetivo mínimo para operar, que é de 200 militares.

“Também houve um declínio notável no número de alistamentos de oficiais”, disse Ye à Reuters. “Além disso, a perda de oficiais, incluindo generais de brigada, foi significativamente maior devido à redução do tamanho dos batalhões e à diminuição do número de soldados rasos.”

Não são apenas as baixas que ajudam a explicar a situação das Forças Armadas. O analista Miemie Winn Byrd, que já ofereceu seus serviços ao Exército dos EUA, diz que o número de deserções aumentou muito nos últimos meses, com as tropas “fatigadas e desmoralizadas”.

50 mil novos soldados

O analista de segurança Anthony Davis, da empresa britânica Jane’s, estima que as facções rebeldes tinham em torno de 75 mil combatentes em 2021. Esse efetivo provavelmente aumentou nos últimos anos, com mais pessoas se juntando à resistência e novas organizações armadas sendo criadas.

Já o governo não divulga o número de soldados alistados, mas uma análise feita no ano passado pela inteligência norte-americana calculava entre 150 mil e 400 mil militares a serviço do Estado. De acordo com a rede Radio Free Asia (RFA), mais de 21 mil baixas foram registradas no Exército desde o golpe de Estado de fevereiro de 2021, incluindo-se mortos, feridos e desertores.

Para tentar equilibrar o jogo, a RFA diz que o regime pretende mobilizar cerca de cinco mil civis por mês com o recrutamento obrigatório. O objetivo final é adicionar 50 mil novos combatentes às sua fileiras e assim reforçar a “segurança nacional”.

A medida, entretanto, não foi bem recebida pela população, que já lutava contra o desemprego e a falta de perspectivas. Muitos jovens em idade de recrutamento passaram a organizar uma fuga de Mianmar, com relatos de birmaneses se dirigindo à embaixada da Tailândia para tentar ingressar no país vizinho.

Pessoas ouvidas pela reportagem disseram que a junta militar se antecipou ao êxodo e adotou medidas para dificultar a saída do país, focando sobretudo nos cidadãos passíveis de recrutamento. Aqueles que tentarem fugir da mobilização podem ser condenados a até cinco anos de prisão.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU. A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar, inclusive vetando resoluções que venham a condenar a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral, como no caso de dezembro de 2022.

Inicialmente, o golpe de Estado foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu financeiramente com a queda. Mas o cenário mudou rapidamente. Para não se distanciar da junta, Beijing classificou a prisão de Suu Kyi e de outros funcionários do governo como uma “remodelação de gabinete”, palavras usadas pela agência de notícias estatal Xinhua.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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